“As pessoas passam tão rápido por nós, que não nos dizem nem um boa tarde... Elas não sabem que isso nos faria sentir vivos. Elas não sabem que um boa tarde faria a gente voltar a viver. Mas isso, com o tempo a gente vai conseguindo. Eu espero que mude”. O desabafo é do gari José Augusto Neiva, 46. José Augusto diz que, desde que passou em um concurso para gari, há 12 anos, tornou-se invisível para grande parte da sociedade. Na semana em que é comemorado o dia do agente de limpeza, o CadaMinuto traz a história deste trabalhador alagoano.
A cor laranja do uniforme parece não ser suficiente para ele ser notado. “As pessoas não enxergam o gari, apenas a função que ele exerce”, afirmou o gari. A tentativa de manter o ambiente limpo e as ruas varridas é pouco valorizada. O local de trabalho, cujo telhado é o próprio céu, não alivia: faça chuva ou faça sol é preciso trabalhar.
Com os pais, Maria Creuza e Valdelirio Neiva, José Augusto aprendeu a importância da honestidade, da persistência e de buscar sempre um futuro promissor. José Augusto, que já encontrou uma bolsa com R$ 32 mil enquanto varria ruas, devolveu o dinheiro ao dono e não se arrepende. Fez o que achava certo, afirma. José podia não ter uma grande quantia em dinheiro, mas tinha a persistência e o desejo de um futuro melhor.
José Augusto que já trabalhou como gari nos bairros do Vergel do Lago, Dique Estrada e Prado, hoje atua na área da Antiga Ceasa, no Mercado da Produção e, com alegria, diz que voltou a estudar e está fazendo faculdade.
CadaMinuto - Você trabalha como gari há 12 anos, ainda lembra do seu primeiro dia de trabalho?
José Augusto Neiva - Ah, lembro! (risos) Assim como qualquer outro trabalho, ninguém esquece. Eu era novato e o pessoal antigo, como diz o ditado, “bota pra quebrar mesmo” (risos). Foi um sacrifício. Eu fiquei quase uma semana pensando em desistir, pois, como eu não trabalhava com esforço físico, minhas mãos quase que não se fechavam. Cheguei a pensar que eu estivesse com problema nas mãos, então, fui ao médico e ele disse que era falta de costume do esforço físico. Desse dia eu nunca esqueci (risos).
CM - Como é a sua rotina hoje?
JAN - A minha rotina se divide entre o trabalho de gari e a faculdade de laticínios, no Instituto Federal. No horário da manhã, vou para a faculdade e das 12h às 18h trabalho como gari.
CM – Durante este tempo trabalhando como gari, você já passou por alguma situação inusitada? Já achou algo que fugiu do comum?
JAN - O povo nem gosta que eu diga isso porque fica com raiva de mim (risos), mas eu achei uma bolsa com R$ 32 mil e devolvi. Ao entregar ao dono do dinheiro, a pessoa estranhou muito. Muita gente diz que eu devia ter ficado com o dinheiro, mas, eu acho assim: se não era meu, como é que eu ia ficar com uma coisa que não era minha?
CM - Você agora voltou a estudar, está fazendo faculdade. O que representa esta nova fase na sua vida?
JAN - Meu irmão, já falecido, era professor e me incentivou muito. Ele sempre me dizia assim: o ser humano só pode mudar a sua vida com o estudo. A partir do estudo você muda a sua vida, pois você passa a ter um respeito maior das pessoas, passa a ter uma melhor qualidade de vida para si mesmo e para a família. Meu irmão insistiu tanto, tanto que convenceu a mim e a meu filho a voltar a estudar. A primeira vez que eu tentei vestibular e o Enem eu não consegui passar, mas não desisti e voltei a fazer até que eu passei.
CM - As pessoas da faculdade sabem da sua profissão? Elas comentavam alguma coisa?
JAN - Na faculdade existe certo distanciamento entre as pessoas, mas os próximos sabem sim. Além destas pessoas, eu também converso com professores, que sempre me dizem: “batalhe, rapaz, batalhe!”. A gente deve sempre procurar almejar algo melhor.
CM – Como está sendo conciliar essa vida de trabalho, estudo, pai de família e esposo?
JAN - Tenho muita força de vontade e almejo um futuro melhor. Quero dar exemplo para o meu filho e mostrar que com esforço a gente sempre consegue um algo mais. Não podemos esperar que as coisas venham de graça porque nada de graça é bom. É sempre bom se esforçar, lutar, batalhar, se sacrificar porque vale a pena no futuro.
CM – Quais os planos que você tem para o futuro?
JAN - Eu penso em fazer um mestrado, uma pós e ser professor. Sei que, para mim, é mais difícil porque há um preconceito de idade, mas quero ser professor, como era a profissão do meu irmão.
CM – Qual o grande desafio enfrentado pelos garis?
JAN - Vencer o preconceito que está dentro de si mesmo. Quando este preconceito for vencido, começamos a passar isso para as pessoas e conscientizá-la, e isso muda.
CM - Você sente que as pessoas te olham com preconceito ao dizer que trabalha como gari?
JAN - Existe um preconceito que tem que ser vencido a partir de nós mesmos. Só depois que a gente vencer esse preconceito, é possível vencer o das pessoas, e conscientizá-las sobre a importância da nossa profissão.
CM - Você já passou por alguma situação constrangedora durante o trabalho?
JAN - Às vezes, a gente está trabalhando e colegas nossos batem, sem querer, pedem desculpa, mas não olham nem quem é a pessoa que está alí. Só quando a gente fala “oi, tudo bom?” é que ele percebe quem é realmente. É uma invisibilidade que se dá com a função de gari. É a minha função, é a função do garçom, um motorista de ônibus, um cobrador. As pessoas não percebem a pessoa que está alí, só veem a função. As pessoas esquecem que a limpeza que fazemos evita muitas doenças. As pessoas esquecem que são elas que produzem o lixo.
CM - Para você, como as pessoas te enxergam?
JAN - Diria que muita gente olha o gari com um olhar de pena. Há algum tempo eu precisei cortar o cabelo e, ao chegar lá, percebi que se eu for com farda é um preço, se eu for sem, é outro. Você percebe um sentimento de pena das pessoas em relação a nós. É como se pensassem “que pena... vou ajudar”. Quase sempre é assim: quando a gente está com a farda, eles só conhecem a farda. Quando a gente tira a farda, as pessoas já não me conhecem.
CM - Existe um sentimento de auto-desvalorização entre os próprios garis?
JAN - Existe, e acontece muito.
CM - Qual o seu grande sonho?
JAN - É fazer um cruzeiro de lua de mel, mas minha esposa não quer realizar porque ela não gosta de navio (risos) e o outro é me tornar um professor.
CM – Qual a mensagem que você deixaria pra todas aquelas pessoas que passam diariamente pelas ruas e não enxergam os garis nem valorizam o trabalho?
JAN - Um abraço e um “bom dia” que a gente dá a uma pessoa pode representar tanto! Em pensar que a gente perde um tempo tão danado com tantas coisas, mas não se lembra de dar um abraço num amigo...
As pessoas passam tão rápido por nós, que não nos dizem nem um boa tarde... Elas não sabem que isso nos faria sentir vivos. Elas não sabem que um “boa tarde” faria a gente voltar a viver. Mas isso, com o tempo a gente vai conseguindo. Eu espero que mude.
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