Sustentar que o governo Lula ainda representa um projeto genuíno de esquerda tornou-se uma ficção difícil de manter. O lulismo, que nasceu das greves operárias do ABC paulista nos anos 70 e se forjou nas lutas sindicais da CUT e na construção do PT, hoje é apenas uma social-democracia de base popular e moderada, moldada às possibilidades de um país que jamais rompeu com seu passado colonial.

Chamar o lulismo de esquerda, socialista ou comunista é um contrassenso completo, sem fundamento e sem sentido. Sua trajetória popular, sua história pessoal e a memória coletiva associada às lutas operárias servem para manter essa aparência. Mas a essência atual do projeto é outra: não de ruptura, mas de conciliação com as elites, de preservação da ordem desigual e de aceitação dos limites impostos pelas elites conservadoras.

Lula é, sem dúvida, uma das maiores lideranças carismáticas do mundo, com inúmeros gestos de grande sensibilidade humana e amor ao próximo. No entanto, isso não o torna um homem de esquerda. Seus governos nunca ultrapassaram os limites possíveis e previstos dentro do modelo capitalista. Parte dessa limitação decorre das forças reais de um sistema excludente e conservador, mas outra parte resulta da escolha consciente de viver entre o possível e o simbólico, equilibrando-se entre o real restrito e um imaginário que alimenta a narrativa de transformação, sem efetivamente desafiá-la em sua estrutura mais profunda.

A contradição torna-se ainda mais evidente ao observarmos a extrema-direita que assumiu o protagonismo político no Brasil, impulsionada pelas jornadas de junho de 2013 e consolidada com a eleição de Bolsonaro em 2018. Um marco que não representou a derrota da esquerda tradicional, mas a sua diluição e enfraquecimento como força de transformação real. Não se trata de um projeto nacionalista ou racional, mas de uma força que rejeita os princípios mais básicos da civilização contemporânea, como a ciência, a inclusão social, os direitos humanos, a justiça tributária e a proteção ambiental. 

Essa extrema-direita constrói sua influência a partir da produção sistemática de fake news, da instrumentalização do fenômeno religioso neopentecostal e da imposição de uma agenda de costumes, alimentada por uma guerra cultural permanente. Seu objetivo não é apenas disputar eleições, mas remodelar a sociedade a partir do medo, do ressentimento e do preconceito, destruindo o espaço público racional e a capacidade de diálogo democrático.

Nesse ambiente, Lula aparece como a esquerda não porque proponha rupturas estruturais, que inexistem, mas porque a direita brasileira é tão atrasada que transforma qualquer medida da social-democracia de base popular e moderada em ameaça. A elite conservadora é tão arcaica que faz de um governo que preserva a lógica macroeconômica neoliberal, dialoga com o agronegócio, serve ao sistema financeiro e se submete ao centrão, um símbolo de resistência popular. Essa distorção revela mais sobre o atraso político do país do que sobre qualquer radicalidade do governo atual. 

É verdade que houve avanços importantes, como a retomada de políticas sociais, a ampliação da educação superior e técnica e a recomposição do papel do Estado. Mas tudo isso ocorre dentro de um acordo das elites conservadoras que só admite mudanças que não toquem nas estruturas de poder. Não há reforma tributária profunda, não há redistribuição de terras, não há democratização dos meios de comunicação, não há enfrentamento sério ao rentismo que compromete os investimentos públicos. O Brasil continua aprisionado nos limites de um arranjo que se perpetua, garantindo que privilégios históricos permaneçam intocados.

Lula tornou-se o limite aceitável da mudança. Sua presença é tolerada e até celebrada por parte da elite justamente porque não ameaça de fato a ordem social. O lulismo de hoje é apenas a face humanizada de um sistema brutal que permanece estruturado para excluir a maioria.

Em meio às limitações do presente, Lula ainda mobiliza e representa, para grande parte da classe trabalhadora, a única opção possível para conter a extrema-direita. Mas até quando a luta por um outro Brasil possível se contentará com as ações mínimas de um governo que, mesmo após ter comandado o Executivo por três mandatos, ainda é visto como “subversivo” apenas por defender o óbvio? A defesa do fim da fome, da redução da extrema pobreza e de uma distribuição mínima de riquezas não deveria ser confundida com transformação estrutural. 

A manutenção dessa lógica limitada adia, indefinidamente, a construção de um país verdadeiramente justo, democrático e igualitário.