O escritor inglês Ian McEwan já tem uma obra literária de tamanho e qualidade que o coloca na condição de candidato a clássico. Lembrando, se assim me permitem, que só a posteridade pode confirmar se ele é bom o suficiente para formar ao lado de outros escritores imortais, que conquistaram corações e mentes ao longo de gerações.
Além de Reparação, considerado por muitos como o seu livro definitivo, tenho um apreço especial a Máquinas como eu. É um romance sobre a relação entre homens e robôs, algo tão banal por esses tempos e cuja abordagem ficcional sempre leva as nossas criaturas à condição de vilões.
McEwan inverte essa lógica, e de maneira magistral. Dois robôs, Adão e Eva, são fabricados – na verdade, são mais, entretanto, só dois se tornaram personagens – e programados com o esqueleto moral de Alan Turing, o pai da computação. Um sujeito genial, e pela homenagem feita pelo romancista, há de se concluir que era também um homem raro, desses para quem a gente deve estender o tapete da história humana.
Pois bem: paro por aqui na revelação do enredo de Ian McEwan, até para que você não perca a curiosidade sobre o excelente livro, com o surpreendente desfecho da história inventada pelo ótimo escritor inglês.
Já o grande personagem, Alan Turing, ficou conhecido do público em geral pelo premiado filme O jogo da imitação, em que ele surge como o matemático - que foi na vida real - que conseguiu quebrar os códigos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial, possibilitando que os aliados avançassem com mais velocidade rumo à vitória sobre a turma de Hitler – o criminoso admirado, nesses tempos, por alguns defensores da pátria e da família (deles).
Lembrei-me do ótimo sujeito, na semana que passou, por causa da divulgação de um estudo publicado por pesquisadores da Universidade da Califórnia (que ainda sobrevivem por lá) sobre o que ficou conhecido como o “Teste de Turing”, um desafio à inteligência artificial. Algo que parece até simples: de um lado, um ser humano; do outro, a máquina. Os resultados mostraram que alguns computadores são capazes de enganar os envolvidos, passando-se por homens – como se isso valesse a pena (sou mais o livro de Ian McEwan).
Voltando ao “pai da computação e da IA”, nem mesmo o seu papel de destaque na conquista da paz, após o fim da grande guerra, garantiu o sossego para que o cientista pudesse viver a sua vida privada com o inegociável direito que devem ter todos os cidadãos e cidadãs do planeta, independentemente da condição que escolher - de gênero, credo ou seja lá o que for.
(Respeitando, sempre que possível, a Regra de Ouro da filosofia moral: só faça aos outros o que gostaria que fizessem com você.)
Homossexual discretamente assumido, Turing foi processado em 1952, na Inglaterra, “por atos indecentes”, segundo a Emenda Labouchere, de 1885, que tornava crime a condição de homossexual, se descoberta. Sua condenação é, até hoje, algo que podemos considerar uma das ações mais abjetas já executadas pelos “homens da lei”: a castração química – como alternativa à prisão. A medicação que ingeriu, entre outros efeitos, provocava o crescimento de suas mamas, mas a humilhação foi devastadora para a sua alma.
Ele optou por morrer envenenado duas semanas após completar 42 anos, em 1954.
Parece piada de mau gosto, mas eis uma verdade cínica, apesar de celebrada por tantos: em 2013, a Rainha Elizabeth II concedeu um "perdão póstumo" a Alan Turing, o que foi extensivo depois a todos os outros homossexuais condenados no Reino Unido, até então, por serem homossexuais.
Vem cá, era ele que carecia de perdão?!
O envenenamento de Turing foi feito com método e, creio, com a mais absoluta tristeza: ele injetou o cianureto em uma maçã, o alimento que o levou à morte.
Na verdade, cá para nós, ele foi assassinado mesmo pelo ódio, o veneno da alma humana.

Ricardo Mota