“Antes, o pessoal da comunidade se reunia para ir à igreja, lá na praça, durante a Semana Santa. Havia uma caminhada, a Via-Sacra, e todo mundo participava. Hoje, não há mais o que comemorar”, lamenta Valdemir Alves dos Santos, de 54 anos, morador do Flexal de Cima há mais de 30 anos.

Ele recorda como a procissão reunia moradores de diversas partes da região: Beira Rio, Ladeira do Calmon, Rua Camaragibe, entre outras. “Era um momento de fé, de união e também de alegria. Porque era a própria população que levava vida para o bairro.”

Mas essa tradição não existe mais, já que a região onde Valdemir mora fica na borda do mapa de risco da Braskem. “A gente não tem mais isso. Não se vê mais nem a população, nem a igreja presente como antes. O próprio católico já nem consegue visitar a praça em paz”, relata. 

“A situação só piora a cada dia. A alegria vai embora, o prazer de viver aqui é zero, e não há mais o que comemorar, como dizer que estamos felizes, que melhorou ou que vai melhorar, porque a tendência é só piorar”, desabafa o morador. 

Assim como o comerciante, segundo a Defesa Civil de Maceió, cerca de 2 mil moradores vivem nas comunidades Flexal de Baixo e Flexal de Cima, localizada no bairro do Bebedouro. 

O afundamento do solo provocado pela exploração de sal-gema por parte da Braskem transformou cinco bairros de Maceió — Bom Parto, Pinheiro, Mutange, Bebedouro e parte do Farol — em verdadeiros bairros fantasmas. No último dia 3 de março, o desastre ambiental completou sete anos.

Com mais de 15 mil imóveis desocupados e cerca de 60 mil pessoas forçadas a deixar suas casas, o espisódio é reconhecido como o maior desastre ambiental já registrado em área urbana no mundo, que transformou a rotina dos moradores e apagou rituais que atravessavam gerações. 

“Se eu quiser chamar um familiar para vir aqui em casa — como agora, por exemplo, que é Sexta-feira Santa —, eu não tenho mais esse privilégio”, desabafa o comerciante.

Segundo ele, os familiares evitam visitar a área, por conta do isolamento social. “Quando entram no bairro, muitos já sentem um choque”, relata. “Quando ele chegou, lembrou como era o Bebedouro antes, e quando entrou nos Flexais, bateu logo uma tristeza, uma vontade de voltar para trás”, relata.

Para Valdemir, esse sentimento não é isolado: “Todo mundo que mora aqui e tem parente fora ou recebe visita ouve algo parecido. Nossos familiares vêm, olham ao redor e só enxergam o abandono, a ausência do que antes era vida, comunidade, laços.”

Nas palavras de Valdemir, a única possibilidade de justiça está numa realocação justa e coletiva. “A única forma de devolver a alegria a essa comunidade é por meio de uma realocação justa, com reconhecimento e dignidade.” 

E acrescenta: “Para a gente poder seguir vivendo ao lado daquelas pessoas, que foram retiradas daqui — talvez em outro bairro, talvez com novas vizinhanças — mas com a possibilidade de continuar a nossa vida de forma coletiva, humana e digna.”

 

Moradores da comunidades dos Flexais pedem realocação – Foto: Carlos Lopes/@cotidiano_fotografico

 

Perda dos laços comunitários

Para o sociólogo e doutorando da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Adson Ney Amorim, 32, que pesquisa a relação entre urbanização e conflito urbano, os crimes ambientais não provocam apenas danos materiais ou ecológicos – eles impactam diretamente os modos de vida e os vínculos construídos nas comunidades. 

Segundo ele, há pelo menos duas dimensões importantes a serem consideradas quando se analisa como esses crimes afetam a rotina e a sociabilidade dos moradores. A primeira, mais evidente, diz respeito ao impacto imediato sobre os sujeitos e suas famílias, que veem suas rotinas rompidas abruptamente.

 “Você está rompendo essas ligações que são mantidas a partir da vizinhança do bairro e faz esse núcleo mais imediato para além da própria família”, explica Amorim. Para ele, a convivência cotidiana e os laços sociais criados no território — com vizinhos, amigos, instituições locais — são fundamentais para a formação das identidades coletivas.

Ainda que a identidade de um indivíduo não seja perdida com o deslocamento, Amorim argumenta que ela é reformulada diante da necessidade de reconstruir vínculos em um novo território. “Esses sujeitos vão se reterritorializar em outros espaços e, muitas vezes, esses laços que foram construídos de amizade e até familiares, que se produzem a partir de casamentos, namoros, enfim, vão ser ressignificados nesse outro espaço”, analisa.

Ele destaca também que, em muitos casos, a mudança forçada de território leva à perda de contatos importantes, dificultando a retomada de relações anteriormente significativas. “Isso implica, de imediato, nessa relação do sujeito de se reconhecer enquanto membro de uma comunidade imediata — uma comunidade de fé, uma escola, um clube. Você tem que reorganizar a parte da tua vida a partir desses novos laços”.

Já a segunda, se trata dos danos profundos na própria forma como a cidade é vivida e construída pelas pessoas. É o que aponta o sociólogo. Para ele, essa dimensão mais ampla do problema muitas vezes é esquecida no debate público.

“Os sujeitos vão se constituindo na cidade e, ao mesmo tempo, eles vão construindo a cidade”, explica Amorim. Ele destaca que a identidade urbana não é algo dado, mas um processo em constante construção, que depende das práticas sociais, culturais e religiosas das comunidades que ocupam determinados territórios.

Segundo o pesquisador, quando há uma intervenção abrupta nesses espaços — como acontece com as comunidades atingidas por crimes ambientais —, o impacto atinge não apenas os moradores, mas também a memória coletiva e a identidade simbólica da cidade. Ele cita como exemplo regiões marcadas por tradições religiosas e festas populares, onde a perda do território significa também a perda de parte da história cultural urbana.

“Essa região da cidade é historicamente caracterizada por essas festas populares, muitas delas orientadas no sentido religioso”, aponta Amorim. Ele lembra que manifestações como o pastoril, o reisado e o guerreiro, frequentemente tratadas como folclore em Alagoas, são, na verdade, práticas vivas, enraizadas na memória das comunidades e continuamente reatualizadas por elas.

 

Moradores dos Flexais vivem isolamento econômico e social – Foto: Carlos Lopes/@cotidiano_fotografico

 

Danos econômicos e simbólicos 

Para o especialista, os impactos do afundamento do solo não afetam apenas a infraestrutura urbana, mas também alteram profundamente a dinâmica da cidade, repercutindo no imaginário coletivo e nos aspectos econômicos e culturais. 

“Há uma dimensão mais ampla da cidade que se perde, em muitos sentidos. Não são apenas espaços de manifestação cultural e sociabilidade, que são fundamentais para a nossa construção enquanto sociedade, mas também o próprio imaginário do lugar, que precisa ser ressignificado”, explica.

Amorim lembra que, mesmo diante de obstáculos e processos de judicialização, festas religiosas e manifestações populares continuavam sendo realizadas nas regiões afetadas, antes da interrupção provocada por deslocamentos forçados. Essas celebrações mantinham viva a dinâmica dos bairros e fortaleciam os laços entre diferentes ruas e congregações. 

“Você tinha uma confluência entre diferentes ruas, entre diferentes congregações, muitas vezes que estavam se unindo em torno da paróquia — ou para além da paróquia — a partir da celebração dessas atividades”, afirma.

Ao relembrar o período da Semana Santa na região, Valdemir relata que havia a tradicional feira do bairro, o qual ficava bastante movimentada. “Era uma alegria tremenda. Era cheia, movimentada, vinha gente até de fora”, lembra. 

Ele relembra que produtos como peixe, bredo, marisco e camarão movimentavam a economia e fortaleciam os laços entre os moradores. “Quem quisesse comprar tinha quem vendia, tiraram tudo isso da gente.”

Hoje, o morador vê tudo isso como parte de um passado arrancado à força. “A gente escolheu morar aqui porque o bairro tinha valor, tinha força econômica. Era um lugar onde, se você investisse, se comprasse uma casa, sabia que tinha retorno. O nosso patrimônio valia. A nossa vida aqui tinha valor. E hoje, isso não existe mais.”

Segundo Amorim, em regiões lacustres, como a que abrange os Flexais, onde as lagoas desempenham papel central, as festividades religiosas tinham grande impacto na movimentação do comércio local, especialmente através da atuação dos pescadores.

“Esse feriado tinha um apelo muito grande nesse período do ano com as vendas. Ainda existe isso, mas você tem um impacto muito forte, tanto pelo próprio impacto ambiental na lagoa como pela reorganização social desses grupos. Quando você retira essas pessoas desses lugares, quebra essa cadeia produtiva de certa forma”, analisa.

O pesquisador reforça que a retirada forçada de moradores e a fragmentação territorial têm efeitos profundos na ritualização da vida cotidiana. “Quando você perde a possibilidade de ter, por exemplo, encenações da via sacra, da Paixão de Cristo e tudo mais nesse território, você não está reativando essas relações no cotidiano”, observa. 

Para ele, essas manifestações não são apenas eventos pontuais, mas sim rituais que renovam e mantêm os vínculos vivos. “Se você faz parte de uma congregação religiosa num bairro e tudo mais, você está participando desse evento, você está ali reatualizando esses laços e esses vínculos”

Outro lado

Procurada pela reportagem, a Braskem informou que iniciou as ações de celebração da Páscoa nos Flexais na quarta-feira (16). Além disso, disse que até o dia 20 de abril, serão distribuídos ovos de chocolate nas escolas Pequeno Príncipe, Nosso Senhor do Bonfim e Reforço Ana Lúcia, na localidade, e também na Quebrada.

E ainda ressaltou que será promovido o Torneio de Travinha, que acontece sábado (19). “Na oportunidade, haverá lanches e distribuição de chocolates, com o apoio de uma empresa parceira.” Veja trecho do posicionamento: 

“A Braskem vem trabalhando na implementação das ações previstas no Projeto Integração Urbana e Desenvolvimento dos Flexais. Das 23 medidas definidas em acordo com as autoridades, 16 foram implementadas, a exemplo da Creche Escola e da Unidade Básica de Saúde (UBS), entregues ao município entre o final de abril e início deste mês.

 Localizada na Avenida Faustino da Silveira, a Creche Escola tem 800 m² de área construída e capacidade para atender até 120 alunos na faixa de zero a seis anos. O equipamento possui estrutura completa e mais de 400 itens de mobiliário e outros objetos. 

Já a UBS foi construída em uma área de 390 m², utilizando a metodologia "Steel Frame" (perfis em aço galvanizado tratado) e possui paredes e telhados termoacústicos, rampas, piso tátil e espaços adaptados para PCDs. O espaço conta com 234 itens de mobiliário, entre camas hospitalares, cadeiras odontológicas, bancadas, refrigeradores, prateleiras, micro-ondas, armários, cadeiras, mesas, poltronas, bancos, entre outros. 

Em andamento, seguem os projetos de requalificação viária, da Praça Nossa Senhora da Conceição e da iluminação pública local, além das construções do Centro de Apoio aos Pescadores, píer de acesso à Lagoa Mundaú, Centro Comercial e espaço para feira livre. 

Câmeras de segurança foram instaladas na região e o Espaço Flexal foi estruturado para abrigar secretarias municipais que fazem o atendimento direto à comunidade. 

Estão em curso na região, de forma contínua, medidas como limpeza urbana e combate a pragas, vigilância, rota de ônibus de uso exclusivo e gratuito para a população dos Flexais, transporte escolar, cursos de capacitação e serviço de apoio psicológico. 

Ainda no âmbito do Projeto Flexais, o Programa de Apoio Financeiro (PAF) foi colocado à disposição da população local. O pagamento foi feito às famílias que moram na região, possuem comércio ou empresa e também para proprietários de imóveis desocupados no local. Além da indenização aos moradores e comerciantes do Flexal, em razão dos impactos decorrentes da situação de ilhamento socioeconômico, a Braskem efetuou – em novembro de 2022 – o pagamento de R$ 64 milhões ao Município de Maceió para a execução de medidas adicionais na região.”

 

Foto de capa: Jean Albuquerque