François-Marie Arouet, que ficou conhecido como Voltaire, era um debochado, sem dúvidas, e embora malvisto, notadamente pela Igreja Católica, a obra marcante que nos legou condena com veemência a intolerância religiosa.
Aliás, a história das guerras religiosas na França, no século XVI, lhe deu argumento para concluir que há um espaço insuperável entre fé e religião, dificilmente percorrido pela maioria dos teístas. A noite de São Bartolomeu, em Paris – 18 de agosto de 1572 -, deixou um rastro de mais de 10 mil mortos, no embate entre católicos e protestantes (huguenotes ou calvinistas, principalmente), marcando com sangue a trajetória do cristianismo na França de Voltaire - nascido um século depois.
Como deixo claro que o texto abaixo trata de pessoas e não de santos - mas de uma gente muito especial, é bem verdade -, inicio com uma citação do filósofo, carregada de sarcasmo, marca essencial dos seus escritos:
- Chamo de grandes homens aqueles que se distinguem no que é útil e agradável, os saqueadores de província não passam de heróis.
Fato concreto é que me toca fundo o sofrimento do papa Francisco, um ser humano admirável, com as falhas próprias da nossa espécie e com qualidades raras entre nós.
Dizendo exatamente isso a um católico fervoroso, de quem gosto bastante, ouvi dele que não perdoava o argentino Jorge Mario Bergoglio pela sua reação amena ao presente que recebeu em 2015 de Evo Morales: um crucifixo com uma foice e o martelo, símbolo do comunismo.
Argumentei que, bem-humorado como é – apesar dos sofrimentos físicos que vem enfrentando –, o papa deve ter pensado o quanto era boba a provocação do líder boliviano. O que disse ele após a troca de presentes com Morales: que o seu “regalo era mais simples” – e parou por aí, até porque aquilo em nada há de ter alterado o seu dia.
O humor que cultiva, no entanto, é algo a se registrar. Ao justificar a escolha do nome com que o tratam no Vaticano, disse em tom de blague que sendo argentino esperavam que ele se autobatizasse de Cristo II. Demais, não é não? Em minha opinião, não se levar muito a sério é uma bela prova de inteligência e humor refinado.
Qualidades que Francisco certamente admira num dos seus antecessores, que escreveu um capítulo primoroso da história da tolerância e do ecumenismo religiosos no século XX. Claro que estou me referindo a Giuseppe Roncalli, ou João XXIII, que sentou no trono de São Pedro de 1958 a 1963, ano em que morreu enfrentando as dores de uma doença impiedosa (câncer de estômago).
Um sujeito altruísta e alegre, escolhido quase que ao acaso, por causa de um desses impasses que o Vaticano enfrenta sempre que um papa morre. “Eles dizem e creem que eu sou um tolo,” escreveu em seu diário, deixando claro que não concordava com os seus seguidores/admiradores (?).
João XXIII viveu as primeiras noites de papado em claro, até que numa manhã disse a si mesmo: “Giuseppe, não se leve tão a sério!”, e deu liberdade ao seu espírito de homem que celebra a vida sem medo da morte , espalhando sua graciosidade por onde passou. Aliás, antes mesmo de se tornar papa, ele já aprontara das suas, descritas no livro Um papa ri, de Kurt Klinger.
Por exemplo: núncio apostólico em Paris, compareceu a um evento social/político, parte da sua atividade profissional. Para provocá-lo, o senhor N. quis constrangê-lo mostrando-lhe uma foto de uma mulher nua, que já passara de mão em mão na mesa de jantar que dividiam. Roncalli olhou com atenção a imagem e devolveu-a com a observação que o outro não haveria de esperar: “Sra. N., suponho”.
Impagável!
E o que não deve ter pensado Pio XII, o duro e polêmico papa, cujos segredos até hoje estão sendo revelados, ao se deparar com um homem sem papas na língua (esqueça o trocadilho)?
Assim: Roncalli, antes de partir para Paris, em 1944, foi recebido em audiência no Vaticano pelo responsável por sua indicação ao posto diplomático. O austero e seco Eugenio Pacelli, ao modo, disse que o novo núncio tinha “sete minutos” para se manifestar. O seu futuro e inesperado sucessor, que já havia salvado a vida de centenas de judeus na Bulgária e na Turquia, foi logo se despedindo:
- Nesse caso, os seis minutos restantes são supérfluos.
Para cima e para baixo, reagia com a mesma sem-cerimônia. A um jovem padre estrangeiro que foi visitá-lo no Vaticano e que usou de todos os esforços para lhe causar boa impressão, alertou: “Meu querido filho, pare de se incomodar tanto. Você pode ficar certo que no dia do juízo, Jesus não vai lhe perguntar: – E como você se deu com o Santo Ofício?”
Sua linguagem direta e sem rebuscamentos o tornou um personagem popular e ímpar em um meio que tanto valoriza o jeito severo e cheio de mistérios de se comunicar. João XXIII costumava, contra a vontade dos cardeais, passear pelos jardins do Vaticano (“Por que as pessoas não deveriam me ver? Eu não me comporto mal, comporto?”) e ouviu certa feita um operário que consertava alguns telhados praguejando em nome da Sagrada Família.
Educadamente perguntou:
- Você tem de fazer isso? Não pode dizer “merda” como nós?
Aliás, de um desses passeios que contrariavam tanto o seu entorno, ele saiu com a convicção de que o Vaticano precisava ser mais justo com os seus trabalhadores. “Eu não sou Vossa Eminência, sou o papa”, disse aos operários que o reverenciavam, até que um deles se sentiu à vontade para reclamar do parco salário que recebia. Pois bem: na primeira reunião do dia, cobrou dos cardeais um aumento generoso para eles e ao argumento de que isso implicaria menos recursos para as obras de caridade, emendou de prima:
- A justiça vem antes da caridade.
No seu diário, João XXIII deixou registrado que “qualquer tipo de desconfiança ou descortesia mostrado aos humildes, pobres ou socialmente inferiores por esses meus colegas, bons eclesiásticos, me faz contorcer de dor”.
Com leveza, foi seguindo no seu papado, voltado ao ecumenismo, sem negar um chiste a ninguém. Da delegação da União Soviética que o visitava, despediu-se pedindo licença para dar uma bênção, afinal “uma bençãozinha não vai fazer mal a ninguém” - e mandou ver.
Foi em meio a muitas dores que a morte o encontrou em 3 de junho de 1963. Sua vida, dizia, era “um dia após outro dia”, até o desfecho inevitável.
Simples como água:
- Todo dia é um bom dia para nascer, todo dia é um bom dia para morrer.

Ricardo Mota