Eu acabara de estacionar o carro, no supermercado, quando ouvi o grito, ao longe:

- Ricardo!

Acenei e veio de lá, mais uma vez, uma pergunta que sempre me provoca algum calafrio:

- Tá lembrado de mim, não?

Acenei com um sorriso aberto e dei por encerrada, esperançosamente, a rápida saudação. 

Qual o quê!

- Sou eu, Ricardo, não está me reconhecendo? 

Senti aquele friozinho na espinha quando ele me “convidou” a chegar mais perto, já que estávamos a alguma distância. Explico o meu quase suplício: desisti há um bom tempo de mentir nessas situações, que, infelizmente, ainda se repetem para mim. Há um fato objetivo: eu envelheci publicamente, e como circulo pouco, também não vejo muita gente. As pessoas foram acompanhando - por causa do meu trabalho - as minhas mudanças físicas: o cabelo embranquecendo e me abandonando, as rugas ocupando o seu espaço e até a corcunda ficando mais acentuada. Eu, no entanto, não tenho sido um espectador privilegiado do avanço do tempo para os meus contemporâneos.

Eis a razão de por que, também ali, optei pela verdade, evitando outros constrangimentos para ambas as partes. Já faz algum tempo, eu caí na besteira de simular uma alegria fantasiosa em um encontro que na verdade seria, pelo que eu entendi, um reencontro, mas que virou vergonha  para mim e frustração do outro lado. Eis que o sorridente e inquiridor personagem de então resolveu dar sequência ao interrogatório ao suspeitar da minha manifestação: de onde me lembrava dele, de quando, em que circunstâncias etc. Quanto mais eu tentava me safar, mais me enredava. 

Daí para frente, decidi não mais chegar à primeira mentira, entendendo que a vida também é a arte do desencontro, e todos nós temos as nossas limitações de memória, algumas bastantes justificáveis.

Voltando ao meu “novo-velho” amigo, senti logo que a minha simpática negativa não despertara compreensão da parte dele. Ele não desistiu: tentou refazer a trajetória da nossa relação de infância ou de adolescência, que até entendi que havia sido muito superficial, mas as minhas lembranças não conseguiam chegar aonde ele tentava levá-las.

Notei que, aos poucos, sua frustração foi se tornando decepção e caminhando, rapidamente, para certa irritação. Ele:

- Pois eu reconheci você assim que vi, mesmo de longe.

Argumentei com a história do meu envelhecimento público etc., disse até que muitas vezes as pessoas me garantem que “eu não mudei nada”, mas que eu sei que não é  bem assim, porque tenho espelho em casa e recordo, até por fotografias, de vários rostos com que já me apresentei ao mundo na minha longeva existência. Os efeitos e marcas do tempo chegaram para mim sem qualquer cerimônia, como é próprio desse indomável personagem de todas as vidas. 

Como não parecesse provocar nenhuma compreensão da parte dele, achei por bem perguntar a sua idade, em busca de uma nova justificativa para a minha falha, àquela altura sem conserto e aflitiva. 

Ele:

- Tenho 70 anos. E você?

- Eu fiz 67. Ou seja, a gente já não se vê há mais de 50 anos. É muito tempo, levando em conta as transformações pelas quais  passamos.

Achei, enfim, que tinha me safado. O que veio a seguir me desmentiu, mais uma vez: “Sei, não”, encerrou a conversa, com cara de poucos amigos, e eu fui me despedindo com um sorriso, numa última tentativa de conquistar alguma simpatia.

Aos dar as costas, ouvi o seu (im)piedoso comentário, dito a um sujeito que estava ao seu lado e que permanecera calado durante toda a conversa:

- Veja você: é mais moço do que eu e já está esquecido desse jeito. 

- É daí pra pior, daí pra pior!