Todos os países do mundo possuem os seus iconoclastas, estes personagens que não “respeitam ninguém” e que, quando se tornam públicos, muitas vezes são impublicáveis.

Confesso que tenho uma queda especial por figuras assim, que compram briga com quase todo mundo. Que têm, sim, os seus afetos, ainda que nem sem estes sejam preservados do seu humor corrosivo, demolidor, mesmo que suas manifestações públicas soem como uma declaração de sincera amizade. 

Colega de bancada na imprensa e de convívio pessoal estreito com Nelson Rodrigues, o escritor Otto Lara Resende não escondia o seu constrangimento com a homenagem que lhe fez o dramaturgo, parceiro de noitadas e conversas sem conclusão à vista.

Uma das peças mais conhecidas do “tricolor de coração” foi batizada Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária - assim mesmo, nesta ordem. Mineiro e discreto, o autor de A testemunha silenciosa foi se escondendo do público, tanto mais sucesso fez a montagem da obra rodriguiana. Mas Nelson não se dava por vencido, citando Resende em seus textos mais populares, publicados na imprensa, sempre apresentando o mineiro como a última e definitiva palavra sobre tudo e qualquer coisa.  É verdade: não precisava externar tanta admiração pelo amigo, mas o fez - para desespero do outro.    

Um dia desses, numa conversa rápida, o meu querido amigo e interlocutor frequente Álvaro Machado me mandou um vídeo sobre o lado direitista – de apoio à ditadura – do teatrólogo mais censurado da história do Brasil. Não há novidade sobre isso, e concordamos na conclusão que Nelson foi – e sempre será - muito maior do que uma página infeliz da sua história.

Nisso falando, lembro-me do Chico Buarque, um dos mais justificados orgulhos nacionais, rejeitando o elogio do seu companheiro de paixão futebolística – o Fluminense, claro –, que destacou o lirismo da apaixonada canção Carolina. Uma rejeição pública, a do “filho do Sérgio”, que depois ele próprio reviu, como todo sujeito grande, tornando-se parceiro do dramaturgo em Perdoa-me por me traíres, a partir de uma peça dele, adaptada por Nelson Rodrigues Filho, preso pela ditadura militar - ironia atroz.

Aliás, Nélson Rodrigues, como todo iconoclasta convicto, passou a vida às turras com todas as correntes ideológicas da intelectualidade brasileira. De si próprio dizia: “Eu me recuso a ser um homem de esquerda, de direita ou de centro. Sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão”. (Como vingança, alguém poderia até dizer que ele iria se filar ao partido do Kassab, o PSD).

Já Millôr Fernandes era amado por Ziraldo, outro grande do humor brasileiro - embora “respeitoso”, quase sempre, no trato com adversários e inimigos. O pai do Menino Maluquinho dizia que seu ídolo “era um grande filósofo brasileiro e o método dele era o humor. Não tem uma frase dele que não tenha um fundo filosófico”. 

Ao modo, Millôr assumia bravamente a condição de “gênio da raça”, o que lhe rendia, por óbvio, muita e justificada antipatia. Sobre o amigo e admirador, entretanto, sempre destacava a sua vaidade, que, era o que indicava, dividia com ele em grandeza e intensidade: 

- (Ziraldo) Desde menino perseguiu o sucesso até que o sucesso passou a só frequentar os mesmos locais que ele. Sua frustração maior é não ser um escândalo nem uma calamidade. Pois, popularíssimo, acha, como eu, que merecia ser mais incompreendido.

Sempre acostumado a bater, Millôr também apanhou bastante dos “inimigos” que foi colecionando. Um dos motivos: ao ver seus colegas de Pasquim, que foram presos pelos militares, cobrando indenização da União e sendo contemplados, disse prontamente que não sabia que a luta contra a ditadura era uma poupança - “achava  que fosse ideologia”.

Tudo bem que muita gente mereceu e merece essa compensação pela cana que teve de pagar simplesmente pelo fato de ser contra um regime em tudo criminoso, mas há aqueles que, por oportuno, acharam um jeitinho de dar sua mordida no erário. 

Mas Millôr mirava os seus.

Um escracho!, é verdade, mas talvez amigo seja mesmo para essas coisas. Por exemplo: apontar os defeitos do outro, como a lhe dizer, numa declaração de respeito: “Apesar de ser assim, eu continuo gostando de você”.

Claro que eu vou entender prontamente quem preferir a conclusão de outro iconoclasta, o britânico Oscar Wilde, condenado à cela de uma cadeia por ser homossexual confesso.  Eis o busílis! Até porque ninguém é mais homofóbico do que um homossexual enrustido ou que não consegue sair do armário. É do autor de O retrato de Dorian Gray esta pérola: 

- O verdadeiro amigo te apunhala pela frente.

Inevitável é concluir, unissonamente, que os citados acima seriam hoje cancelados, trucidados e tornados fantasmas sociais. Pior: por gente estúpida, mal-humorada, que despreza a inteligência e a arte de pensar. 
Eu, por meu lado, acho que não me parece o melhor dos caminhos conviver diariamente com gente assim, mas só não tenho mais saudades desses personagens porque eles também moram na minha estante, uma parte essencial da minha vida. 

E são ainda melhores nos dias ruins.