Isso mesmo.
Eu não gosto de comemorar o meu aniversário: transformei-o no dia dos meus ausentes. Ainda assim, os meus filhos não deixam que eu me esqueça da data.
Eis que, na semana passada, eles resolveram encomendar um bolo como presente pelo avanço da minha velhice, mas bem especial. E resolveram assim (o diálogo abaixo não é ficcional):
- Que sabor a gente pede?
- Não sei, ele tem uns gostos esquisitos, né?
- Fanta uva...
- Biscoito wafer de abacaxi...
- Vamos pedir o mais incomum, um que poucos pediriam.
Pois é, gente, nada escapa aos nossos filhos sobre nós. Desde pequenos, eles são espiões involuntários das nossas almas. Sabem dos nossos gostos exóticos, se os temos, enxergam e memorizam os nossos atos, ouvem nossas palavras e as guardam em um improvisado museu do som e da imagem – cada um com o seu.
Não nos darão no futuro nenhuma chance de sermos um pouquinho hipócritas, ao menos. Se não formos fiéis ao que defendemos com veemência, enquanto eles crescem e aparecem, haverão de nos cobrar a verdade a qualquer momento - no melhor momento para eles, que fique claro.
E se não acontecer sob o signo da raiva - por algum acontecimento desastroso pelo meio do caminho -, teremos o mais justo julgamento da parte deles. Porque esses humanos com “memória de elefante” terão, como nem um outro caminhante sobre a pele do planeta, os elementos mais variados e precisos sobre o que somos, o que fazemos e, eis o busílis, o que pregamos até sem perceber.
Mas não temos o que temer: o amor se manterá aceso, ainda que alterado de teor, cor e humor. Porque o amor trocado entre os bichos e suas crias vai se transformando, se metamorfoseando, vira até outra coisa, mas continua sendo amor.
Como nos alertou Lord Henry, o personagem cínico de Oscar Wilde (em O retrato de Dorian Gray), poucos de nós conseguem perdoar nossos pais, mas bem podemos ser os beneficiários do perdão. Eu, da minha parte, espero que a vida deponha e argumente em meu favor. Se não for o caso, apelo para a indulgência - este último recurso do Direito para os homens cujas culpas não têm expiação possível.
Quanto aos pais, acho que temos de mirar, desde muito cedo, o caminho da progressiva irrelevância. Se no começo da vida das nossas crias somos tudo para elas, à medida que crescem, vamos cedendo a nossa importância para o mundo. E se você ainda não notou, ele é bem maior do que os ascendentes dos seus descendentes.
Não fiquemos tristes: quanto menos os filhos dependerem de nós quando adultos – inclusive emocionalmente -, mais bem-sucedidos seremos como pais. E, pasmem!, teremos tido participação direta na construção de adultos que aprenderam – se aprenderam – a se virar sozinhos, construindo suas vidas olhando pra frente, com alguma sustentação psicológica e emocional.
Afinal, não somos apenas os responsáveis por aquilo que eles revelarão no divã do psicanalista (os que acreditarem nesse tipo de ajuda). Se Freud não enxergou isso, o problema era ele – e não pais e/ou filhos. Até porque a espécie chegou até aqui graças a esse eterno ciclo da vida, em que o filho de hoje é o pai/mãe de amanhã e a procriação há de seguir até o tombo final da humanidade.
Sem dores?
Nunca!
Sem amores?
Jamais!
A imagem que formulei para mim mesmo, como pai, foi a de um bote salva-vidas. Ele fica ali, colado do lado de fora do casco do barco. Os filhos não o veem, mas haverão de saber que o socorro está ali, à mão. Se a maré virar, é buscar o que é deles – até porque já foi assim comigo, numa ótima lição dos meus pais.
(E quem há de saber os segredos do mar?)
Quanto ao sabor do bolo, não foi nem tão exótico: limão siciliano.
Uma delícia!