Genialidade com humor?
Ah, gosto que me enrosco!
Eis um caso para se registrar e guardar: o do alemão Georg Christoph Lichtenberg, físico e matemático (1742-1799), mais admirado como escritor, apesar de não ter publicado um só livro, citado por tantos sujeitos geniais e de áreas distintas, pela largueza explicitada da sua sabedoria. Estão na sua lista de admiradores: Kant, Goethe, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Tolstói, Einstein e Freud.
Ufa!
Há de se ressaltar que as suas quatro mil observações – pensamentos, aforismos -, escritas em cadernos de rascunho, só se tornaram públicas no século XIX com o título Observações sobre assuntos diversos – em nove volumes, esclareço. Arrisco dizer que ele era uma espécie de Millôr Fernandes do seu tempo, disposto a uma boa briga no campo das ideias e iconoclastias.
Eis uma boutade de Lichtenberg, então rumo à imortalidade:
"Certas pessoas são chamadas de gênios da mesma forma que certos insetos são chamados de centopeias: não porque tenham mais de 100 pés, mas porque a maioria das pessoas não consegue contar além de 14."
Mas estou convencido de que até ele se curvaria a um albino alagoano, do Agreste, quase cego, próximo dos 90 anos – tem 88 – e que estaria condenado à pobreza e anonimato se não fosse...
Isso mesmo: Hermeto Pascoal é mais do que um sujeito genial – ele é um gênio da música, o que se repete pelo mundo inteiro. Ainda que eu não seja um conhecedor profundo da matéria, ao saber mais sobre os caminhos dessa figura espantosa, curvo-me para dizer que se são poucos aqueles que merecem esse epíteto, o Bruxo Hermeto Pascoal, nascido em Lagoa da Canoa, é um deles (quero crer que sei contar até cem).
Na biografia do multi-instrumentista – em alguns dos seus álbuns, ele toca todos os instrumentos, inclusive os que ele inventa -, intitulada Quebra tudo! A arte livre de Hermeto Pascoal, o jornalista Vitor Nuzi conta em zigue-zague a trajetória improvável do sujeito, praticamente autodidata, que resolveu varar o mundo espalhando criações que impressionam os grandes da sua arte, gente como Isaac Karabtchevsky, Arthur Moreira Lima, Miles Davis e tantos ases do melhor jazz.
Chick Corea, por exemplo, após acompanhar, boquiaberto, uma apresentação do Hermeto, fez questão de dizer a ele - com testemunhas:
- Desde que eu nasci e durante toda a minha vida, nunca tive influência musical tão grande e tão profunda como a de ter ouvido a sua música.
Um exagerado!
Não Corea, mas o albino de barbas longas e ar de profeta, que já compôs mais de 10 mil músicas, a imensa maioria nascida no improviso, que só tinha hora para começar. Hermeto já fez shows de mais de cinco horas de duração, sem parar, deixando o teatro, rodando a rua, seguido pela plateia embevecida e retornando ao palco inicial.
Sua capacidade criativa é tamanha que, na gravação de um álbum com Flora Purim e Airton Moreira (responsáveis por levá-lo para os Estados Unidos), ele escreveu no estúdio, num fôlego só, assombrando seus parceiros, 15 metros de pauta musical.
Ele, creiam, viu a música antes de ouvi-la:
“Quando faço um arranjo não sei de nada enquanto eu não escuto. Não quero tirar minha própria surpresa”.
Variação sobre o mesmo tema:
“Só sei que compus a música quando a escuto. Fico curioso para saber. Até parece que não fui eu. A música verdadeira mesmo é a que você imagina”.
E os outros?
A sofisticada cantora Jane Duboc disse e assinou: “Ele é um maluco, faz tudo na hora. Não conheço ninguém igual. Quem toca com Hermeto toca com qualquer um, no mundo todo” (e este é um consenso entre os músicos profissionais).
No Festival de Montreux, de 1979, ele e Elis Regina protagonizaram “os treze minutos mais intensos da história da MPB” (André Midani), num encontro só possível porque ali estavam o Bruxo e a Pimentinha, improvisando como se tocassem juntos desde sempre. Tem gente que acha que seria uma armadilha para Elis, ali, mas Hermeto sabia com quem estava lidando e considerou que estava tocando com “a maior cantora do Brasil em todos os tempos”. Então, deixou correr solto.
E a história dos porquinhos/músicos?
Pois bem: demorou a vingar. Só virou realidade em 1977, nos Estados Unidos, onde um casal de fazendeiros emprestou seus bichinhos de estimação para que Hermeto fizesse uma afinada parceria com eles, em Slaves Mass.
Antes, no Festival Internacional da Canção, em 1972, em plena ditadura, ele levou um coral de suínos para a apresentação de Serearei, sua composição a ser interpretada pela doce e maravilhosa Alaíde Costa. Debochado ou distraído, Hermeto postou os animaizinhos fardados – isso mesmo – no teatro. Os milicos, de olho, prenderam os bichinhos e caçaram os donos: “Tudo aquilo era para mostrar que o animal tem o som próprio dele”, falou o zoomaestro. Vá dizer isso para uma gente sem humor!
O caso Miles Davis revela muito dois artistas: o instrumentistas americano gravou três músicas de Hermeto Pascoal e, pasmem!, assinou-as como se dono fosse.
A reação dessa glória alagoana:
- Se eles querem tudo, as músicas que eu tenho, no nome do Miles, eu dou. Não sou dono da música. Quando eu faço, a música é uma flor que ponho no jardim para quem quiser levar.
Em sendo assim, Hermeto distribui generosamente ao mundo o que a Natureza lhe deu de graça, na definição do próprio:
“Quando vim para a terra, já vim músico. Não procurei ser, porque eu já era”.
Então, para que ter algumas se ele já tem todas?

Ricardo Mota