De repente, o cinema brasileiro está no topo no cenário internacional. Depois do Globo de Ouro de melhor atriz para Fernanda Torres, o filme Ainda Estou Aqui disputa três indicações ao Oscar. A cerimônia ocorre no dia dois de março. Neste sábado, outra obra brasileira, O Último Azul, conquistou o Urso de Prata no Festival de Berlim, um dos mais importantes do mundo. Diretores e elenco são aplaudidos com entusiasmo.

Mas eu quero escrever sobre um aspecto específico da participação brasileira nesses festivais e premiações. Pela imprensa, vemos as entrevistas de Walter Salles, o diretor de Ainda Estou Aqui, e de seus protagonistas, Fernanda Torres e Selton Mello. Eles se apresentam impecáveis, sob figurinos assinados por figurões do mundinho “fashion”. Pelos tapetes vermelhos, cliques, poses ensaiadas e mensagens edificantes.

Para Salles, seu filme sobre o caso Rubens Paiva, vítima da ditadura militar de 64, é educativo, “muito importante para o Brasil”, uma homenagem à luta de uma mulher na busca pela verdade sobre o sumiço de seu marido. Torres e Selton seguem a mesma linha de discurso. Falam do filme como uma espécie de “resgate” da história real do país. Empacotadas em platitudes, as declarações beiram perigosamente a pieguice. 

Gabriel Mascaro, o diretor de O Último Azul, não é da escola de Walter Salles. Ainda bem. Nos documentários Um Lugar ao Sol (2009) e Doméstica (2012), ele chamou atenção para seu estilo. Antes de vencer em Berlim, Mascaro lançou três longas de ficção que confirmam estarmos diante de voz original em nossas telas. O primeiro foi Ventos de Agosto (2014), filmado no litoral norte alagoano, com elenco de não atores.

Depois vieram Boi Neon (2015), no qual ele subverte regras sobre o universo de um vaqueiro, e Divino Amor (2019), sua aposta mais ousada até então. Neste último, o diretor imagina o Brasil no ano de 2027, numa distopia, governado sob leis e mandamentos evangélicos. Ao contrário de Salles, o cinema de Mascaro não fala às multidões – o que por si só não é problema, nem sinal de mérito. Antigo debate.

Mas, ao menos agora, os dois diretores têm algo em comum – como descobri neste sábado ao ver entrevista de Mascaro sobre a vitória em Berlim. Ao lado de Rodrigo Santoro, um dos atores na obra, ele repetiu o mesmo tom das declarações da turma de Ainda Estou Aqui. Boas intenções, engajamento pela defesa do povo brasileiro, um certo ufanismo. Tudo bem esquisito. Tudo muito longe de um cara como Glauber Rocha.  

O diretor de Terra em Transe e Cabeças Cortadas foi na contramão mão dos bons modos e da obediência a regras de etiqueta. Enquanto todos querem fazer bonito nos tapetes de qualquer cor, o baiano desprezava essas encenações de caras, bocas e frases feitas. Nos festivais internacionais, a presença de Glauber era a certeza de bagunça no coreto.

No Festival de Veneza de 1980, ele levou seu último filme, o inclassificável A Idade da Terra. No evento, o cineasta aparece com um visual esmolambado, cabeleira revolta e ideias nada convencionais. Em entrevista a Fernando Silva Pinto, no Fantástico, ele fala da recepção da crítica europeia a seu filme: “Pelas repercussões aqui na Europa, trata-se de um filme delirante, paranoico, visionário, além dos limites do cinema ocidental”.

Em seguida, o diretor defende sua obra com estas palavras: “O filme não tem nenhuma história, é um barato audiovisual que fala do Brasil de todos os tempos e de todas as eras, e é um poema”. E mais: “O que provocou o pau aqui na Itália foi a linguagem, porque o filme tem um outro tempo, um outro espaço de montagem, o barato é outro”.  

Em vez de tentar bajular a crítica internacional nesses festivais, o diretor parte para o ataque. “Foram incapazes de entender a novidade formal do filme, porque são ignorantes”. Fosse hoje, seria cancelado por manifestações “deselegantes”. 

Outros tempos, sim. Mas é importante lembrar que a rebeldia é combustível indispensável à vitalidade da arte. Vale para ontem e para hoje. Nosso maior cineasta fez da própria vida um filme – que segue a desafiar e a incomodar o “coro dos contentes”.