Qualquer pessoa que leve a sério a amizade tem poucos amigos. Até porque dá um trabalho danado sustentar uma relação que exige sempre reciprocidade para existir e se manter. Não há amizade de um só, mesmo que às vezes a gente descubra isso apenas depois que parece ter se desfeito o que já não havia.
Amigo é como um espelho: deixa evidentes os nossos defeitos, mas também funciona como um reflexo daquilo que a gente é - de bom - ou pretende ser. No fundamental, ainda que com tantas dessemelhanças, está no centro da luz desse espelho a única coisa que não admite diferenças para que se estabeleça a amizade: o caráter. Cá para nós, o que o tem deformado – o mau caráter -, desconhecerá para todo o sempre o que é ter uma relação onde não conta nada daquilo que vale algum dinheiro. Ou melhor: das coisas que o dinheiro não compra.
Daí, meus caros e minhas queridas, perder um amigo é amputar um pedaço de você, o que exigirá um reaprendizado para continuar a lidar com o cotidiano, que sempre nos cobra coragem e permanente capacidade de adaptação: o mundo muda, você muda também – e nem sempre na mesma direção e sentido.
Talvez por isso, ter/manter um (a) amigo (a) sempre foi e será tão difícil. É só imaginar as transformações pelas quais você passa e concluir, por óbvio, que com a outra parte elas também ocorrem - e ainda assim se mantém a essência da relação amorosa. Qual? De novo ele, o caráter.
Como unir é mais do que juntar, a amizade constrói, para que seja sólida e imune a tempestades, uma interseção invisível, que o tempo trata de transformar em perfeito amálgama, apagando as linhas que separam um (a) do (a) outro (a).
Nos últimos dias tenho lembrado com mais frequência, e não com menos carinho, do meu amigo Fred, o “Frederico Joaquim Teles de Farias”, como anunciava Dona Maria, que por tantos anos trabalhou na minha casa - sempre que ele chamava ao telefone.
Neste domingo, Fredão faria 69 anos, mas num ato de alta traição à nossa amizade e aos seus queridos/queridas, ele partiu em 2018 (28 de janeiro), deixando intacto, porém, o espaço que continua sendo dele no baú dos meus mais sentidos afetos. É bem verdade que não são muitos os que encontram abrigo nesse recanto da minha alma - como imagino também que eu não haverei de habitar tantas moradas de amor/carinho, ainda que me dê por satisfeito com o que tenho.
Olhando pelo retrovisor, também um espelho, mirar de memória o meu amigo desde a infância na velha Buarque de Macedo, um sujeito inteiro, sem fragmentações de caráter, e me enxergar nele me enche de um orgulho quase juvenil: eleva a minha autoestima. É como se isso referendasse um respeito maior por mim mesmo.
Até hoje, em alguns momentos da vida, e já se vão sete anos desde a sua morte, ainda me pego com a intenção de ligar para ele, para comentar alguma coisa qualquer, sabendo que o Fredão teria uma opinião divertida/debochada ou até mal-humorada sobre o tema, qualquer tema que sentasse à mesa conosco. Foram mais de 50 anos de convivência intensa, com os altos e baixos próprios da vida, mas sem sinais de ruptura.
A amizade, assim a entendo, é o amor sem sexo, por ser um encontro exclusivo de almas e não de corpos, tornando-se verdadeiramente possível e desejável que se estabeleça, sem crises identitárias e dispensando bandeiras, entre um homem e uma mulher - ou entre pessoas de quaisquer gêneros.
Enfim, uma amizade só acaba para valer quando ambos deixam de existir. Se resta um sobrevivente, o (a) outro (a) vai continuar vivo (a) de alguma maneira.
Por coincidência, me caiu nas mãos, na semana que passou, este breve texto (abaixo) de Milan Kundera, precioso e certeiro:
“Um morto que eu tenha amado simplesmente nunca estará morto para mim. Não posso nem mesmo dizer: eu o amei; não, eu o amo. E se eu me nego a falar do meu amor por ele no tempo passado, isso significa que aquele que morreu é. Talvez seja essa a dimensão religiosa do homem”.
No fim, é isso, Fredão: enquanto eu for, você também será.
(Em tempo: nem todos os comentários aparecem no celular, mas podem ser vistos no computador. )