É possível defender a liberdade visando aniquilá-la depois?

Eis um truque, já histórico, de falsos democratas que bradam em defesa “da liberdade de expressão” com o objetivo final de suprimi-la. Ou alguém vai dizer que a mentira criminosa, a calúnia e a ofensa pela ofensa  é uma prática libertária, própria de homens de mulheres que visam o bem comum?

A quem respondeu “sim”, uma nova indagação: seria um espírito livre ou defensor das melhores causas humanas aquele ou aquela que enxerga na ditadura – e vale para qualquer ditadura -, o grito de liberdade que escancara, principalmente nas redes sociais?

A isso, creio, bem podemos chamar de hipocrisia, e ninguém melhor para traduzi-la do que um hipócrita, ainda mais se personagem histórico.

Poucos civis foram tão identificados com a cara mais perversa da ditadura militar do que o ex-ministro da Justiça Armando Falcão. Autor do que seria o mantra do obscurantismo - “Nada a declarar” –, que repetia à exaustão para os jornalistas que queriam entrevistá-lo, o cearense, sempre carrancudo, usava-o para ele e deixava claro que o dito era extensivo a toda imprensa, brasileira ou não. Já nos primeiros meses do governo Ernesto Geisel, a censura, sob o seu controle, baixou a determinação: 

“De ordem superior, fica terminantemente proibida a divulgação, através dos meios de comunicação social, escrito, falado e televisado, notícia, comentário, transcrição, entrevista, comparações e outras matérias relacionadas à recessão econômica. Fica igualmente proibida a divulgação de análises, resultados, ainda que hipotéticos, sobre recessão econômica”.
 
Meninos e meninas, isso aconteceu no Brasil e não faz muito tempo. 

O país saíra do “Milagre Econômico” da era Médici, e a verdade da economia não podia mais ser escondida. Mas falar sobre ela? Nem pensar. Insinuar que vivíamos uma tirania, que não conseguia disfarce convincente, era crime contra a Segurança Nacional. Uma charge do filósofo Millôr Fernandes pôs a revista Veja numa geladeira de frigorífico: Falcão obrigou a publicação a enviar a Brasília, até a noite de terça-feira, todos os textos que chegariam ao público no sábado – gelaaada!
 
Fez muito mais. 

Por conta da derrota acachapante da Arena, em 1974, baixou a “Lei Falcão”, que só permitia a foto dos candidatos na TV, já em 1976, com um pequeno e minguado currículo dos postulantes aos cargos públicos. Criador de monstros, ele foi também o responsável último pelo "Pacote de abril" – de 1977 –, fechando o Congresso Nacional e “garantindo” a reforma do Judiciário brasileiro ao modo da caserna. 

Censurou peças, músicas, filmes, tudo aquilo que fosse “impróprio ao povo”, ao gosto de almas toscas e vazias, pelo seu conteúdo político e/ou moral. Queria cuidar “dos valores da família brasileira”, até porque para isso fora levado ao ministério pelo presidente Geisel. 

(Qualquer semelhança com tempos recentes, e muito recentes, não será mera coincidência.)
 
Afinal, ele já havia demonstrado do que era capaz em plena democracia, quando ocupou, em 1961, o mesmo cargo no governo de Juscelino Kubitschek. Reprimiu estudantes e trabalhadores e recebeu o reconhecimento dos ultraconservadores tupiniquins. Numa ditadura então, sem freios, Falcão poderia exercer toda a sua truculência. Aos de cima, no entanto, demonstrava cordialidade e submissão; aos de baixo, sua força (um “ciclista”, na definição precisa dos alemães - a quem ele tanto admirava quando da ascensão e glória do nazismo).
 
E foi esse comportamento ambíguo que o retirou do ostracismo a que estava entregue na década de 1970. Sua escolha para o Ministério da Justiça surpreendeu a muitos do entorno do general Geisel, mas a definição do presidente era por si só convincente para os moderados do regime: “O Armando Falcão é suficientemente inteligente. E é combativo e esperto para fazer o que a gente quer. Todo mundo vai se arrepiar” (e para quem quer mais “arrepios” é recomendável a leitura da farta literatura sobre a ditadura militar, que virou “movimento” na definição do ministro Toffoli).
 
Mas o cearense de Quixeramobim, nascido em 1919, já havia percorrido uma longa estrada na política nacional. Escreveu sua história com atividades que não foram exatamente nobres. Deputado federal pelo PSD, no governo JK - narra o jornalista Flávio Tavares em O dia em que Getúlio matou Allende, deliciosa coletânea de crônicas políticas -, Falcão especializou-se em arregimentar moças pobres do subúrbio do Rio de Janeiro, semianalfabetas, para alegrar as festas do círculo palaciano. Sim, Falcão exercia essa nobre e sofisticada missão, ainda muito atual nos meios políticos e empresariais. 

Fez sucesso com JK e seu vice, Jango – ambos, femeeiros clássicos. As meninas, mais deslumbradas que amadas, ganhavam empregos para elas e seus familiares nos institutos de aposentadoria e pensões do Governo Federal. Era, mais uma vez, o erário financiando os prazeres da carne para os poderosos – o que, repito, acontece até hoje, inclusive em terras caetés.
 
Em 1989, já morto e enterrado o governo militar, Armando Falcão resolveu publicar sua autobiografia: Tudo a declarar. Claro que a historinha acima não consta das suas nada sinceras recordações.