“Vivo apenas com o salário para tudo: pagar o aluguel da casa, comprar comida, remédios e fraldas. Quando preciso levar meus filhos ao médico, ainda tenho que arcar com o transporte. Não sobra nada em casa porque sempre falta algo para eles”, desabafa Rosileide de Lima, 36 anos, dona de casa e moradora da comunidade Vale do Reginaldo, no bairro do Poço, na parte baixa de Maceió.
Rosileide vive com seus dois filhos, Emerson, de 7 anos, e Erick, de 6, ambos diagnosticados com transtorno do espectro autista (TEA). A principal fonte de renda da família é um salário mínimo (R$ 1.518), proveniente do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que ela recebe por um dos filhos.
Ainda assim, o pouco que entra não é suficiente para cobrir as despesas básicas, deixando a família em situação constante de vulnerabilidade. Para complementar as necessidades diárias, ela depende de doações de cestas básicas.
A realidade de privações se repete na vida de Jany Dayse Fidelis da Silva, 44 anos, que mora com o filho José Lucas, de 10 anos, e cuida do neto Erick Gabriel, de 3 anos, enquanto sua filha trabalha.
Residente da Favela Muvuca, localizada no bairro Vergel do Lago, Jany enfrenta a falta de saneamento básico e a constante exposição a insetos e animais peçonhentos, como ratos, baratas e escorpiões.
“A convivência com tantos mosquitos aqui é um tormento. Além do incômodo, eles trazem doenças como dengue e zika, que eu mesma já tive e ainda sofro com as sequelas. Meu neto também pegou, mas felizmente o caso dele foi leve”, relata.
A região do complexo lagunar, às margens da Lagoa Mundaú, é composta por quatro favelas, além da Muvuca, há a Sururu, Peixe e Mundaú. Os barracos são feitos com restos de lona e madeira.
Segundo o Ranking do Saneamento de 2024, divulgado pelo Instituto Trata Brasil, 71% da população de Maceió não têm acesso a esgoto. Além disso, a capital alagoana está entre os sete piores investimentos em saneamento no Nordeste. Esses números ilustram os desafios para alcançar as metas da legislação de 2020, que visa a universalização do saneamento básico até 2033.
A pesquisa desenvolvida pelo Instituto analisa as condições de saneamento básico nas 100 cidades mais populosas do Brasil, utilizando dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2022, divulgados pelo Ministério das Cidades.
Pobreza multidimensional e seus efeitos estruturais
A história de Rosileide e Jany evidencia um cenário mais amplo de pobreza multidimensional, que vai além da insuficiência de renda e expõe uma série de privações estruturais. Embora o número de crianças e adolescentes vivendo nessa condição tenha diminuído entre 2017 e 2023, a pobreza multidimensional continua sendo um desafio alarmante no Brasil.
Atualmente, cerca de metade da população com até 17 anos — um total de 28 milhões — ainda enfrenta privações graves de direitos básicos, como acesso à moradia digna, educação de qualidade e saneamento adequado.
Os dados são do relatório “Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil”, publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). O estudo utiliza informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e foi divulgado na última quinta-feira (16).
De acordo com o levantamento, em 2017, 62,5% das crianças e adolescentes (equivalente a 34,3 milhões) viviam em situação de pobreza multidimensional. Em 2023, esse percentual caiu para 55,9% (28,8 milhões). Já no caso da pobreza multidimensional extrema, os números passaram de 13 milhões (23,8%) para 9,8 milhões (18,8%) no mesmo período.
As privações afetam, de maneira mais intensa, crianças e adolescentes negros, assim como aqueles que vivem em zonas rurais. Esse cenário ressalta a urgência de implementar políticas públicas integradas e intersetoriais para abordar a questão de forma eficaz.
De acordo com a chefe de Políticas Sociais do UNICEF no Brasil, Liliana Chopitea, em publicação no site do Fundo, apesar de alguns avanços, é essencial garantir que os direitos humanos sejam tratados de forma integrada.
“Crianças e adolescentes precisam ter todos os seus direitos garantidos de forma conjunta, já que os direitos humanos são indivisíveis. Os resultados deste estudo mostram que o Brasil conseguiu avançar nas diversas dimensões avaliadas, reduzindo a pobreza multidimensional e impactando positivamente meninas e meninos em todo o País”, explica.
Em Alagoas, os números reforçam o alerta: 80,5% da população não têm acesso à rede de esgoto, e 36,7% das famílias vivem em insegurança alimentar grave, de acordo a professora da Faculdade de Nutrição, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e doutora pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ana Paula Clemente.
Esses indicadores, complementados por dados da Rede PENSSAN de 2022, mostram que o estado também lidera a taxa de desemprego no Nordeste (12%) e enfrenta um histórico de exclusões sociais.
“Essas estruturas socioeconômicas precárias contribuem diretamente para a manutenção de elevadas taxas de pobreza infantil no estado. Assim, é imprescindível que políticas públicas integradas e eficazes sejam implementadas para romper esse ciclo e assegurar os direitos fundamentais das crianças”, destaca a professora.
Programas sociais e o combate à pobreza
A especialista enfatiza que programas sociais, como o Bolsa Família, desempenham um papel fundamental no combate à pobreza infantil, mas sua eficácia vai além da mera transferência de renda. Clemente ressalta a importância das condicionalidades do programa, que incentivam a inclusão social em áreas essenciais, como saúde e educação.
“Na saúde, essas condicionalidades incluem o cumprimento do calendário de vacinação, o acompanhamento nutricional de crianças até sete anos e o pré-natal para gestantes. Na educação, exige-se uma frequência escolar mínima, promovendo não apenas o direito à educação, mas também a inclusão e o desenvolvimento integral”, explica.
As desigualdades de gênero e raça, profundamente enraizadas na sociedade brasileira, agravam ainda mais a vulnerabilidade social, especialmente entre mulheres e pessoas negras. Segundo a docente, essas iniquidades históricas tornam ainda mais desafiadora a superação da pobreza para essas populações marginalizadas.
“Historicamente, no Brasil, as iniquidades raciais e de gênero existem, e, em situações de vulnerabilidade social, elas se acentuam, uma vez que a quebra desse ciclo se torna ainda mais difícil para essas populações”, pontua.
A pobreza infantil tem impactos devastadores no desenvolvimento individual e social, perpetuando ciclos de exclusão ao longo de gerações. Para interromper essa dinâmica, Ana Paula reforça a necessidade de garantir o acesso integral e de qualidade aos direitos constitucionais.
“Não é necessária a criação de novas políticas, mas sim a implementação efetiva das existentes com um olhar multidimensional para as famílias”, ressalta.
Além disso, ela aponta a importância da atuação conjunta entre o setor privado e a sociedade civil para promover ações sustentáveis. “A pobreza infantil é um problema que afeta a todos nós, e construir uma sociedade mais igualitária é benéfico para todos.”
Embora o relatório da Unicef não apresente dados específicos para Alagoas, Clemente sugere que ferramentas como o Cadastro Único podem ajudar a suprir essa lacuna. “A análise crítica desses dados é indispensável para nortear estratégias de combate à pobreza e à insegurança alimentar no estado”, finaliza.
*Estagiária sob supervisão da editoria
Foto de capa: Marcello Casal/Arquivo/Agência Brasil