Ter boas lembranças ajuda a viver, disse com sabedoria Dostoiévski, uma das minhas paixões literárias (só encontro em Grande Sertão: Veredas uma obra do tamanho dos Irmãos Karamazov – ainda que isso seja somente uma manifestação particular de gosto).

Pois bem: eu guardo algumas ótimas recordações, desde a minha adolescência, época em que livros tentadores eram proibidos para maiores e menores, só porque alguns sujeitos fardados e avessos às letras assim queriam. Ler, então, aí pela década de 1970, Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado, ou A mãe, de Gorki, foram desafios aos donos da vida e da morte, mas restaram como experiências inesquecíveis, ajudando a viver. 

A censura, é verdade, não há de ser uma boa lembrança, mas dela não podemos nos descuidar, já que essa história de que não repetimos os mesmos erros é uma gradíssima bobagem – ainda que muito repetida, até por esquecimento nosso.

Os EUA, que já viveram o seu fascismo particular com o macarthismo, retomou a Era das Trevas, elegendo a literatura como grande inimiga dos puros e amantes da pátria, avessos figadalmente ao comunismo. 

De quem? 

De Gabriel García Márquez, com O Amor nos Tempos do Cólera e Cem Anos de Solidão,  de Isabel Allende, com A Casa dos Espíritos,  de Gustave Flaubert, com Madame Bovary, o previsível Oscar Wilde, de O Retrato de Dorian Gray, de Ernest Hemingway,  com seu Por Quem os Sinos Dobram, Victor Hugo e Os Miseráveis, James Joyce, com Ulisses e do “russo” Liev Tolstói, de Anna Karenina.

Todos, acima, títulos que vêm sendo censurados pelas autoridades públicas americanas nos tempos de agora. 

Se seu queixo está desabando, segure-o porque vem mais nessa lista. Por exemplo: Shakespeare e o nosso Paulo Freire, odiado por aqui pela turma do obscurantismo, também estão sendo vetados em ambientes de escuridão na terra da estátua da liberdade - que, dizem alguns, está ficando corada com a turma de lá.

Segundo a entidade que reúne os escritores americanos (PEN), houve a censura de quase 4.500 títulos no último ano letivo, com mais de 10 mil banimentos – em escolas e bibliotecas. Talvez você conclua que este obscurantismo explícito resultou no trumpismo redivivo, mas se disser o contrário não errará por muito.

Todos os grandes ditadores e ilusionistas políticos odeiam os livros pelo simples fato de que eles nos ajudam a pensar e confrontar a realidade. Claro, se estivermos dispostos a isso e avançarmos no nosso questionamento de homens e mitos.

Impossível não lembrar o Bücherverbrennung, expressão alemã que significa "queimar livros", uma prática que deu fogo e paixão ao nazismo na Alemanha dos anos de 1930. Calcula-se que, então, mais de 20 mil livros, a maioria de bibliotecas públicas, foram incendiados pela juventude hitlerista – Destacamento Tempestade, Liga dos Estudantes Nacional-Socialistas, Tropa de Proteção -, transformando em cinzas o conhecimento acumulado pela vanguarda intelectual da Europa naquela quadra da história. O resto do enredo trágico nós conhecemos muito bem – pelo menos assim imagino.

O tema foi maravilhosamente tratado pelo filme Fahrenheit 451, de François Truffaut, disponível para quem tem curiosidade de conhecer um pouco mais sobre o que somos e que sempre corremos o risco de voltar a ser. O título da obra é uma referência à temperatura do fogo ao devorar as páginas de um livro, que há de ter consumido antes os neurônios da sensatez de alguns senhores da guerra. 

Perdoem o mau humor, se assim lhes parece, em pleno domingo, mas a questão continua me incomodando muito, até pela retomada das ações de grupos extremistas e hipócritas espalhados pelo mundo - o que nos inclui -, saudoso da Europa que viveu o que, presume-se, teria sido a última grande guerra entre as nações poderosas e belicosas. 

Aliás, vem do século XIX uma advertência de outro alemão, o poeta Heinrich Heine, que haveria de nos servir sempre que alguém apontar a sua arma para uma obra literária, em nome da “virtude perdida”:
 
- Onde se queimam livros, cedo ou tarde se queimam homens.