Tentei, algum tempo atrás, rever o excelente filme sueco-dinamarquês A caça (com memorável interpretação do ótimo Madds Mikkelsen), mas não consegui.  A história, que eu conhecia já havia mais de cinco anos, incomodou-me tanto que parei a sessão antes que me sentisse contaminado, demasiadamente, por um sentimento em tudo ruim, provocado pela convicção de que uma grande injustiça era cometida ali.

“Coisas da idade!”, muitos haverão de dizer, e eu não vou discordar, até porque recomendo ardorosamente aos que não viram o filme que o façam e se deparem com o ótimo cinema que os nórdicos produzem – ainda que não seja tão conhecido quanto as produções hollywoodianas.

Confesso que encaro com crescentes dificuldades narrativas ficcionais sobre estupro, sofrimentos demasiados de crianças e coisas do gênero. Como sempre mergulho de cabeça nas histórias que me chegam, quero crer que a essa altura da minha vida, já sou abastecido pela realidade o suficiente para dispensar mais uma prova da minha empatia. Nem sempre sofrer é viver. 

Tenho convicção, e ela me parece tão óbvia, que a vida não existe para ser justa. Aliás, como alertou Nietzsche, “a injustiça é indissociável da vida”. Senti-la e fazer dela um motor da sua ação, principalmente quando ela ocorre com “os outros”, é o que talvez diferencie grandes homens da maioria de nós, pessoas comuns. 

(Deixo claro que não trato aqui da injustiça social, esta que deveria de alguma forma nos mobilizar a todos, no cotidiano e sempre, enquanto respiramos o mesmo ar que os injustiçados da Terra.)

Um exemplo fantástico da capacidade de alguém tomar como sua, definitivamente, a luta por justiça para alguém vítima da torpeza humana, é o escritor francês Émile Zola, que assina um dos clássicos mais definitivos sobre o tema: J’accuse: a verdade em marcha. O livro, na verdade, é uma coletânea de cartas e artigos escritos por ele, divulgados com a sua força moral, em defesa de um oficial francês, no final do século 19.

Alfred Dreyfus foi acusado e condenado – pelo governo e pela Justiça da França – de alta traição: teria revelado segredos militares da França à arqui-inimiga Alemanha. Ressalte-se, por indispensável, com o auxílio luxuoso da grande imprensa.

A obra que transformou Zola num herói nacional, hoje lembrado pela coragem e inteireza de caráter, lhe custou a própria vida: no seu embate contra o poder estabelecido e consolidado em seu país, o escritor foi exilado, adoeceu e viu a morte chegar quando o tempo ainda seria de espera (em 1902, aos 62 anos). O rei e seus súditos mais próximos foram expostos nus, com a crueza que só a verdade é capaz de exibir, tornando andrajos as vestes do poder.   

Admirável a coragem de Zola de tomar como sua a dor de um homem que foi feito vítima do seu tempo: Dreyfus era judeu, portanto, parte da “escória” que parcela significativa da Europa abominava - e não só na Alemanha –, o que o autor de Germinal tratou de expor aos seus conterrâneos e contemporâneos, tornando-se ele próprio um estorvo para a sociedade francesa.

Sempre que volto a esse pequeno-grande livro, retomo o sentimento lá de cima, de uma revolta que se mistura à impotência, por trazer já a convicção de que conhecer a história não nos livra de repeti-la, tediosamente (seja como farsa, seja como tragédia). O mundo está aí para não me deixar mentir. 

Na semana que passou, uma notícia que me parece tantas vezes repetida, principalmente envolvendo homens negros, me tomou a alma de assalto: um japonês que passou 48 anos preso pelo assassinato de quatro pessoas foi inocentado recentemente e pode viver o resto dos seus dias – ele tem 88 anos – sem pedir desculpas por existir. Detalhe: a nova investigação analisou e decidiu sobre as mesmas provas que o levaram à condenação.

E daí?

Creiam, no caso, eu me imaginei no lugar dos que o levaram à condenação a morte em vida, não sem buscar tomar para mim o ensinamento de Sócrates (o grego):  

- Por meu gosto, nem uma coisa nem outra; porém, se me visse obrigado a optar entre praticar uma injustiça ou sofrê-la, preferiria sofrê-la, não praticá-la. 

Cá para nós: ainda bem que a vida, até agora, não me deixou numa encruzilhada com semelhante escolha.