O vício em jogos de azar não é um tema novo, mas a popularização das chamadas “bets”, ou apostas online, trouxe a tona uma discussão e acendeu um alerta das autoridades quanto ao assunto, que a depender da maneira como for conduzido, pode desencadear um problema de saúde pública a longo prazo.

As bets proporcionam tudo de forma mais rápida, fácil, pois a possibilidade do jogo ou aposta está na palma da mão. Tudo acontece em poucos minutos: a aposta, o resultado, a frustração ou euforia, e a possibilidade de uma nova jogada.

Segundo um levantamento do Estadão, 30% dos brasileiros com contas em bancos buscaram empréstimos para financiar apostas nos últimos 12 meses. Uma pesquisa do Datafolha aponta que 15% dos brasileiros já investiram em sites de bet e o gasto médio por mês é de R$ 263. A maioria dos apostadores são jovens entre 16 e 24 anos. Em 2023, os brasileiros gastaram R$ 54 bilhões em apostas online.

Em agosto deste ano, segundo dados do Banco Central,  5 milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões via PIX com as bets. Após o BC divulgar os dados, o Governo Federal anunciou, nesta sexta-feira (27), que vai analisar os dados e estuda proibir o uso do cartão do Bolsa Família para bets.

Por todo o país, inclusive em cidades alagoanas, há registros de pessoas que perderam dinheiro, bens, se endividaram, prejudicaram familiares e até desviaram dinheiro do trabalho para usar em apostas online.

Os jogos de aposta são muitas vezes comparados a drogas, por viciar e agir em áreas do cérebro que causam a dependência. No último Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o vício pelo jogo/apostas mudou de seção e passou a fazer parte da mesma categoria das drogas, do álcool e das substâncias em geral. 

Para esclarecer sobre o vício em jogos e apostas, o CadaMinuto conversou com neuropsicólogo Wellington José da Silva, especialista em saúde mental, neuropsicologia e dependência química, com mais de vinte anos de atuação na área.

Confira a entrevista:

Qual o momento em que uma pessoa percebe que está viciada em apostas/jogos? Quais os sinais que ela dá para que os familiares percebam?

Não existe um momento específico no qual a pessoa percebe, ou não, que está viciada, pois é um processo involuntário e digamos “inconsciente”, no sentido de que o organismo vai secretando substâncias prazerosas e vai se acostumando com esse comportamento, sem ponderar perdas ou danos. Como a pessoa modifica seus padrões de comportamento, não fica difícil dos familiares notarem as diferenças logo no início das mudanças, porém a maioria não dá atenção a isso e acha que é normal.

Todas as pessoas que realizam apostas desenvolvem a dependência? Há algum aspecto psicológico ou biológico que pode favorecer?

Nem todas as pessoas desenvolvem a dependência, pois existem pré-disposições que são relevantes no processo. Porém, posso afirmar que todo comportamental disfuncional tende a evoluir para consequências danosas para a pessoa. Há muitos aspectos biológicos envolvidos no processo de dependência, podem ser filogenéticos (ligados ao histórico familiar genético), ontogenéticos (ligados ao histórico de desenvolvimento do indivíduo), sociogenéticos (ligados à cultura em que o indivíduo está inserido), entre outros. 

O neuropsicólogo Wellington José da Silva / Foto: Divulgação

 

O aumento exorbitante do número de pessoas viciadas em jogos e apostas online pode estar diretamente relacionado ao acesso à internet? Quais outros fatores contribuem?

A internet faz parte dos aspectos culturais e tem ligação, direta, com o aumento do número de dependentes. Sobre outros fatores podemos destacar a facilidade de acesso e a hiperestimulação de estímulos tecnológicos que vivenciamos, que proporcionam ao cérebro uma sensação de que tudo deve ser acessível e fácil o tempo todo e isso é um grande perigo.

Hoje estamos vivenciando uma explosão de novas dependências e uma delas, bem exponencial e preocupante, é a dependência em jogos e apostas. Não vou entrar em detalhes sobre as áreas neurológicas envolvidas nos processos dos comportamentos de jogar, porém acho interessante ressaltarmos que as mesmas áreas que processam a dependência em drogas, também atuam nas demais dependências, como o ato de jogar e apostar. 

Quais os impactos emocionais que esta dependência/vício provoca no usuário?

Toda dependência provoca impactos emocionais disfuncionais que vão provocar mudanças nos padrões de vida dos dependentes, comprometendo sua vida como um todo e podendo evoluir para situações de risco de morte para ele e para terceiros. 

É possível vencer o vício? Qual o tratamento indicado para uma pessoa que está com dependência/vício em jogos e apostas? Há indicação do uso de algum medicamento?

Com certeza é possível vencer qualquer vício, pois se o organismo “aprende” a se viciar, ele também pode aprender a deixar o vício. Claro que não é fácil, nem simples e nem rápido. É necessário um processo psicoterapêutico sério e comprometido para obtermos evolução nessa, digamos, cura do vício. A intervenção ou não de outros profissionais ou a necessidade de uso de medicamentos, ou não, é avaliada dentro do processo psicoterapêutico. 

Há alguma forma ou medida de prevenção? 

Não há uma forma ou medida específica para prevenirmos um vício ou dependência, mas sim um conjunto de fatores que podem facilitar ou dificultar que o indivíduo entre nesse caminho. Há centros terapêuticos que ajudam, inclusive tenho um em Arapiraca, para auxiliar as pessoas a prevenirem tais situações em suas famílias. Como diz minha querida avó, lá em Minas Gerais: “Quem escuta cuidado, não escuta coitado”. E o custo da prevenção é sempre bem menor que o custo da reparação.

  

Os critérios para ser classificado como dependente, segundo Manual Psiquiátrico para Transtorno do Jogo:  

  1.  Necessidades de jogar com quantidades crescentes de dinheiro, a fim de obter a excitação desejada.
  2. É agitado ou irritado quando tenta diminuir ou parar de jogar.
  3. Tem feito repetidos esforços infrutíferos para controlar, diminuir ou parar de jogar.
  4. É muitas vezes preocupado com o jogo (por exemplo, ter pensamentos persistentes de reviver experiências de jogo passadas, fragilizando-se ou ao planejar a próxima aventura, pensando em maneiras de obter dinheiro para jogar).
  5. Muitas vezes, quando joga sente-se angustiado (por exemplo, impotente, culpado, ansioso, deprimido).
  6. Depois de perder dinheiro no jogo, frequentemente volta outro dia para recuperar perdas.
  7. Mente para esconder a extensão do envolvimento com jogos de azar.
  8. Colocou em risco ou perdeu um relacionamento significativo, emprego ou oportunidade de educação ou carreira por causa do jogo.
  9. Depende de outros para prover dinheiro para reviver situação financeira desesperadora causada pelo jogo.

Ainda segundo o Manual, como reflexo da dependência, as vítimas começam a manifestar sintomas como depressão, ansiedade e – em alguns casos – pensamentos suicidas. Para se livrar do vício, é recomendada a busca de ajuda de especialistas em saúde mental, terapia cognitivo-comportamental, medicação, prática de exercícios físicos e outras atividades relacionadas à liberação de dopamina, como encontrar amigos, ir ao cinema, ler, começar um curso e fazer outras atividades que, de preferência, sejam gratuitas.