Não há exagero em afirmar que o afundamento nos bairros do Pinheiro, Bebedouro, Mutange e parte do Bom Parto e do Farol abriu cicatrizes profundas na cidade inteira. Partida em muitos pedaços, Maceió se viu diante da maior tragédia ambiental em solo urbano do país, ou melhor, do mundo.
Para além das rachaduras físicas, uma fenda ainda mais profunda parece dividir os mais de 60 mil moradores dessas regiões do resto da cidade. Muitos que vivem na face turística e solar da capital alagoana não conhecem o drama das famílias que perderam seus imóveis, seus trajetos diários, parte significativa de suas memórias.
No livro A fenda da lagoa, a alagoana Lili Buarque, que cresceu no Pinheiro, traduz em primeira pessoa o registro do cotidiano no bairro. Autora estreante, também cantora e compositora, ela vai revelando um tom sobre a tragédia diferente daquele que encontramos ao ler as notícias narradas pelo jornalismo.
O crítico Antonio Candido defendia que a literatura transfigura a realidade, mas ela também registra, através do ponto de vista de quem escreve, os fatos e, com isso, perpassa o documental. As circunstâncias descritas no livro nos levam a enxergar o outro Pinheiro, aquele que hoje existe apenas na memória.
As histórias que ouvimos de pessoas muito próximas, familiares, amigos, se aproximam muito mais do que escreve Lili Buarque do que a descrição fria que costumamos ver nos veículos de comunicação.
E como bem observou Edma de Góis, em artigo sobre o livro na revista Quatro Cinco Um, “nesse ponto a literatura tem mais tentáculos do que a história oficial, por ser capaz de manusear dados que não são objetivos, porém inegociáveis para a transmissão da memória ou de denúncia de crimes escancarados”.
Aqueles que foram afetados diretamente pelo afundamento denunciam, desde março de 2018 quando foi registrado o primeiro tremor de terra na região, que não adianta buscar a resolução de questões decorrentes do desastre, sem antes solucionar o problema das vítimas.
Defender a centralidade do sofrimento das pessoas é trazer à luz narrativas que são maiores que conceitos e termos técnicos. Enquanto a imprensa fala em “subsidência”, “colapso da mina”, “catástrofe ambiental”, a paisagem urbana no entorno da região afetada causa uma dor bem mais aguda.
Muitos descrevem as imagens dos bairros afetados como “típicas dos filmes de guerra”. Prédios, casas, estabelecimentos comerciais, praças, ruas e avenidas abandonadas parecem ecoar, na dor e no silêncio, aquele outro tempo que encontramos no livro de Lili Buarque.
Não sei se a cidade, como um todo, já se deu conta desse seu infortúnio urbano. O cinema, a literatura, o jornalismo sério podem se configurar como fontes geradoras dessa consciência. Essas cicatrizes escancaradas no nosso chão precisam ser traduzidas em ações concretas e em resistência. Caso contrário, nos tornamos cúmplices desse crime, por pura omissão.