Em um desses sonhos que se parecem com a realidade, Nelson Rodrigues apareceu para uma conversa breve na sala de jantar. Não me recordo se a sala era a minha. Com a calma de quem já viu o mundo mudar incontáveis vezes, ele chegou com um cigarro na boca, o andar ordeiro e pediu um pingado, como se fosse um velho conhecido. Sentou-se devagar, com a velocidade dos bondes que nunca andam. Enquanto o café não ficava pronto, ele falou do céu, mas o assunto logo tomou outro rumo. Surpreendentemente, ele me garantiu que Jesus jamais censuraria alguém, mantendo intactas suas convicções antigas. “Não precisei me contrapor a Nosso Senhor”, disse-me contente. Depois remendou: “Cristo não é Homem para isso”.

 

Aproveitei a chance e perguntei o que ele achava das loucuras do mundo moderno: o sectarismo identitário que nos fragmenta, o vitimismo transformado em bandeira ideológica, o ressentimento idem, o ódio, a glorificação da miséria e da culpa coletiva. Falei ainda da praga do politicamente correto, da ideologia de gênero, da corrupção da lingua portuguesa e de como o conceito de beleza, bondade e verdade parecia se dissolver. Ele, o cronista que tantas vezes desvendou a alma do Brasil, me confessou estar assustado, assustadíssimo com tudo isto e mais algumas coisas. Não reconhecia mais o país, tampouco o espírito de unidade da nação.

 

Naquele sonho, o gênio incomodado e rebelde que já havia desafiado tantos padrões se viu perplexo diante de um Brasil onde o certo e o errado, fato e ficção não existiam mais, e a liberdade de pensar e sentir parecia cada vez mais ameaçada pelos velhos burocratas de plantão. Fiquei com a certeza de que, se Nelson ainda estivesse por aqui, faria da sua arte uma arma contra esses tempos nebulosos. Diria ele: a ostentação é brega. A censura é execrável. A socialização da culpa é a culpada. A ideologia de gênero, assim como Marx, é uma besta. Ele tinha razão.

 

Quando a conversa ia ficando mais leve e enveredando para o futebol, o choro do meu caçula me acordou, sem que eu pudesse me despedir com dignidade do velho sábio. Não apostei no meu botafogo contra o seu fluminense. Nem sugeri uma crônica sobre o glorioso de hoje. Uma prosa sobre o novo camisa 07 cairia bem. Não tive tempo de se quer o alertar sobre as demasiadas sensibilidades atuais e essa tal de cultura woke. Para ser sincero: ainda bem que meu filho me acordou. Descanse em paz, Nelson!