Antigamente você assistia a entrevistas. Agora você dá uma olhada nos cortes. “Corte” é um trecho de uma entrevista. A primeira vez que ouvi falar desse fenômeno foi no YouTube. Não sei quando, mas, ao acompanhar algum podcast, o apresentador nos avisava: quem não quiser ver a conversa completa, “pode ir direto para os cortes”. Parecia um aviso inofensivo, mas era um novo marco de nossa decadência universal.
O triunfo do corte não chega a ser o fim do mundo, mas é uma boa pista de como chegaremos lá. A novidade tem ligação direta, é claro, com o declínio do jornalismo. Se ninguém consegue ler uma reportagem durante uns vinte minutos, quem diabos vai encarar um podcast com duas horas de duração? Por mais que o entrevistado atraia audiência, não será capaz de segurar o expectador além de uns dois minutos.
Nos últimos dias, o poder dos cortes entrou na pauta da imprensa como nunca. Afinal, se a novidade é assim tão avassaladora, teria de tomar conta do ambiente da política. E é na eleição da maior cidade do país que a bagaceira vai deixando estragos, mortos e feridos pelo caminho da degradação generalizada. Pela candidatura do abjeto Pablo Marçal, o corte alcança a glória e desafia, digamos assim, o que resta de razão e dignidade.
Mas não quero perder tempo com o caso específico da eleição para a prefeitura de São Paulo. Embora a política esteja por todos os lados de nossa vida, a ascensão do corte tem alcance muito maior. Estamos falando de uma mudança de hábito. É uma daquelas escolhas que alteram nosso modo de ver o mundo. Ao virar a esquina numa direção, nunca mais nada será do mesmo jeito. A era do corte atesta nossa fragilidade.
Quem ganha com isso? Não podemos esquecer que estamos no reino da distopia digital, da plutocracia daqueles homens toscos e trilionários que comandam as novas tecnologias e as redes sociais. Elon Musk e seu X têm tudo a ver com esta revolução pelo retrocesso. A busca frenética pelos cortes dos mais variados assuntos alimenta a engrenagem e a lógica impostas pelos plutocratas do metaverso. Eles ganharam.
Não sei por que essas belezas do mundo virtual não me seduzem. Se tenho interesse na entrevista da historiadora Lilia Schwarcz ao podcast Reconversa, dedico atenção à integra do programa e, quando vejo, lá se foram 1 hora, 52 minutos e 13 segundos. Um trecho isolado da conversa jamais dará conta de um diálogo completo, com argumentos, discordâncias, dúvidas, réplicas e tréplicas. O corte dissolve o pensamento.
Tudo novo. O corte se junta ao que já está em vigor nos mais variados departamentos da vida cotidiana. Tudo tem de ser na velocidade máxima, com trocas imediatas, múltiplas e incontáveis, sem perda de tempo com besteiras como a contemplação do detalhe. Da arte ao trabalho, do lazer aos afetos, quem não está nas cortadas, está por fora. A adesão ao corte é a renúncia de nossa autonomia intelectual. Por aí.