A morte absolve o morto de seus pecados? A equação voltou com tudo a partir do último sábado, 16 de agosto, dia em que morreu Silvio Santos, aos 93 anos de idade. Logo pela manhã, a Globo interrompeu a programação e passou a exibir um noticiário em tempo integral sobre a história e o legado do apresentador e dono do SBT. Em grande medida, o tom foi laudatório, mas não descabido. O tamanho do personagem explica o paradoxo.

Até onde vi, o nome mais forte a contestar as homenagens ao animador de auditório foi o ator Pedro Cardoso. Ele lembrou o óbvio: apoiador da ditadura de 64, o empresário cresceu sob o regime que praticou tortura e matou brasileiros. O artista também atacou a forma como SS explorava o drama de pessoas pobres em seus programas. Além disso, comparou o “homem do baú” ao ex-ministro Delfim Netto, morto no último dia 12.

São figuras distintas, com papéis e atuações em esferas diferentes na vida pública. Aliás, aposto que a maioria da população brasileira não sabe quem foi Delfim Netto. Ao contrário, SS estava no dia a dia dos brasileiros havia décadas. Mesmo para quem não dá bola para TV, é impossível ignorar a figura que marcou a história desse veículo no Brasil de modo incomparável. Goste-se ou não, é um nome forjado na cultura popular.

Não, ninguém precisa minimizar erros evidentes na conduta do agora morto para reconhecer sua grandiosidade. Uma coisa não elimina a outra. Reproduziu preconceitos, bajulou governos, exibiu grosserias, tripudiou a miséria do povaréu, vendeu ilusões. O maior nome da TV brasileira fez tudo isso, sem dúvida nenhuma. Ainda assim, sua estatura no imaginário nacional chegou ao topo pelas qualidades de um fora de série.

Não vou aqui repetir os elogios que apareceram de sobra nas reportagens e depoimentos sobre o falecido. É tudo aquilo mesmo. De todas as virtudes exaltadas, a mais difícil de explicar é a mais aparentemente trivial: o carisma. Como se mede esse traço? É daquelas variáveis sobre as quais não existe fórmula explicativa – apenas sabemos que é assim. No palco, uma autenticidade que ignora regras e modelos de marketing. 

Silvio Santos combinou domingo e alegria. Estranho. Para mim, as duas dimensões sempre foram um tanto incompatíveis. O domingo, como sabe um cara comum, tem algo de melancólico. Uma sensação no âmbito do inexplicável, que paira no ar, vinda de longe, de lugar nenhum. E foi nesse dia esquisito que o comunicador sem igual construiu sua mitologia. Não há nada perto desse fenômeno na trajetória da televisão nacional. 

A morte não o absolve de nada, é claro. As glórias e as falhas de caráter habitam a mesma aventura. Do mesmo modo, sua genialidade não pode ser contestada.