Já confessei, neste breve espaço domingueiro, que uso para meu proveito uma máxima entre as máximas de Millôr Fernandes - tratando desse meio que me possibilitou sobreviver e criar meus filhos com alguma dignidade:

- Imprensa é oposição, o resto é secos e molhados.

Que fique claro: eu compreendo, por óbvio, que alguns governos são melhores do que outros, mas entendo também que se você, eu e outros nos considerarmos inteiramente satisfeitos com quem está no poder, damos a nossa autorização para a acomodação – o que nunca deve ser o caso (aqui vale também a incompatibilidade entre desejo e posse). Em regra, os governos não agem - reagem.

Millôr estava certo, mas não posso esquecer que antes dele já havia gente da mesma estirpe a incomodar poderosos e que sofreu fisicamente, inclusive, por conta de suas iconoclastias. Por exemplo: Aparício Torelly, personagem a quem recorro com frequência em dias mais cinzentos e de cansaço anímico - profissional, inclusive. 

O autocognominado Barão de Itararé, para quem “a vida seria fácil se não fossem as dificuldades”, é ainda garantia de muitas risadas e admiração. Aliás, seu batismo de fogo, aquele que cunhou definitivamente o seu nome na história do Brasil, aconteceu na sequência da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas para a presidência/ditadura (quase sempre) por praticamente  15 anos.

Inicialmente, Aporelly, como já era conhecido, concedeu-se o título de “Duque de Itararé”, numa auto-homenagem à batalha que não aconteceu. Foi nas páginas do seu A manha - corruptela do jornal A manhã – que o jornalista/humorista/comunista justificou ao leitorado o motivo de tamanha honraria dizendo que ele, o novo nobre, era “uma personalidade de excepcional valor, que se distinguiu nos campos de batalha” (a de Itararé, pois, pois). Duas semanas depois rebaixou seu título para “Barão de Itararé”, tão somente “como prova de modéstia”. Este, aliás, era o imperador da URSAS (União das Repúblicas Socialistas  da América do Sul).

Está claro, ele não poupava nem mesmo a si em suas provocações e deboches, um sinal claro, em minha opinião, de inteligência e sensatez. Itararé, o Brando – não se perca: o artigo deve ser lido com acento agudo e emendando com o adjetivo, formando uma só palavra, um verbo no gerúndio – viera para ficar aporrinhando os poderosos e deles recebendo o troco ao modo.

Foi assim que o alagoano general Goes Monteiro virou Gás Morteiro; a encíclica papal Rerum Novarum foi rebatizada de Rerum Velharum. Getúlio Vargas também comia azedo com ele - Getúlio Dor Neles Vargas -, o que lhe valeu algumas boas pancadas da polícia política de Filinto Müller (Filinto Mula). Como em 1932, noticiado pelo próprio Barão, quando foi preso e recebeu a advertência para que “tomasse muito cuidado com a sua linguinha de prata”. Findou agradecendo a indisfarçável admiração dos tiras, para quem posou “de frente e de perfil”. 

Mas nem tudo virava graça: eram tempos duros, aqueles, que a gente achava que não haveriam de se repetir – e como fomos tolos!  Seu principal adversário, no entanto,  eram os integralistas, “amadrinhados” (expressão dele) por Plínio Salgado, a quem começou a combater de frente, sem medo e com muito humor, a partir de 1933: o lema “Deus, Pátria e Família” tornou-se, na língua do Barão, “Adeus Pátria e Família”, deixando furibundos os protofascistas do lado de cá do oceano.

Já diretor do “Jornal do Povo”, em 1934, sofreu um atentado bem próprio dos tempos de ditadura: foi sequestrado e espancado por oficiais da Marinha - sob a influência dos integralistas -, indignados com a sua publicação de um folhetim sobre a revolta dos marinheiros, liderados por João Cândido (um tema que até hoje é alvo da fúria dos oficiais da força).

Era o dia 19 de outubro, e durante o sequestro, os militares apontaram-lhe uma arma e mandaram que escrevesse um bilhete de despedida para a família: “É um favor que lhe fazemos”. “Dispenso-o”, reagiu, para apanhar sem dó e ser abandonado nu e careca em um lugar ermo do Rio de Janeiro,  a capital do Brasil de então.

Recuperado, voltou a sua sala do “hebdromedário” – outro trocadilho – que dirigia, não sem colocar na porta uma tabuleta com a inscrição que ele consagrou:

- Entre sem bater.

O Barão tornou-se uma figura muito popular no Rio de Janeiro, tanto que foi eleito vereador pelo PCB, em 1946, com um criativo slogan de campanha, debochado como ele só: “Mais água! Mais leite! Mas menos água no leite!” Na sequência, em 1947, o STF cassou o registro do partido comunista e ele fez sua despedida, ao modo, do mandato: “Deixo a vida pública para entrar na privada”.

Valente e debochado, Aparício Torelly  foi um homem do seu tempo, mas como faz falta nos tempos de hoje!