Tirar onda com símbolos religiosos é uma tradição universal. A França não inventou nada com a paródia da Última Ceia, quadro de Leonardo da Vinci, o monstro do Renascimento. Na abertura dos Jogos Olímpicos, o episódio bíblico apareceu com Jesus e apóstolos representados por drag queens. A ideia dos organizadores foi celebrar a diversidade com a homenagem à comunidade LGBT. Claro que daria barulho nos quatro quadrantes.

Para além da histeria previsível – apenas mais um capítulo na infalível polarização da política –, houve protestos também na esquerda. Não foram somente os patriotas do Senhor que se irritaram com a Santa Ceia multicolorida. Marina Silva e Randolfe Rodrigues não gostaram. Sem ataques como os de bolsonaristas, é claro, a ministra e o senador acham que o número foi um equívoco, “provocação desnecessária”.

Houve aqueles que apontaram para o reincidente desrespeito ao cristianismo. Ou seja, cobraram a falta de esculacho contra as outras religiões. Por que não fazem piada com muçulmanos? Foi o pensamento que muitos expressaram no meio do bate-boca gerado pelo desfile francês. A própria França já experimentou em várias ocasiões as consequências do humor sobre o Islamismo. Mais de uma vez, acabou em morte.

Mas quero lembrar dois episódios tipicamente brasileiros. Em 1986, o então presidente José Sarney decretou censura ao filme francês Je Vous Salue, Marie, do diretor Jean-Luc Godard, o revolucionário da Nouvelle Vague e um dos mestres de Glauber Rocha. Assisti à obra numa sessão clandestina armada pelos guerrilheiros do DCE da Ufal. Foi meu único ato subversivo até hoje. A sala no bloco de Ciências Sociais ficou entupida.

O outro caso é do carnaval de 1989. A Beija-Flor levou à avenida um Jesus Cristo mendigo. É o maior desfile na história das escolas de samba. Criado por Joãozinho Trinta, o enredo Ratos e Urubus Rasguem minha Fantasia inverte a lógica e, no lugar do luxo, apresenta as alas vestidas com farrapos. Uma obra-prima do teatro aberto e ao ar livre. Mas a figura de Jesus não pôde ser vista. Foi censurada pelas autoridades.

O impacto da censura deu ainda mais força à alegoria criada pelo carnavalesco. A escultura do Cristo desfilou coberta por um plástico preto, com a inscrição “Mesmo proibido, olhai por nós”. O veto oficial ocorreu por pressão da Igreja Católica no Rio.

À geração Z: naquele tempo não havia cancelamento nas redes sociais. A ousadia, porém, incomodava do mesmo modo os guardiões dos valores da tradicional família brasileira. Há coisas que são eternas – no Brasil, na França, no esporte ou no carnaval.

Esqueci de escrever antes: o filme de Godard é a história de Maria no século 20. Uma garota que trabalha num posto de gasolina e namora José, um descolado taxista. Está longe das melhores obras do diretor que, assim como Da Vinci, também foi um monstro.