Foi-se o tempo que o artesanal se resumia àquele souvenir para recordação de uma viagem. Em Alagoas, as belezas naturais se misturam à potencialidade produtiva e criativa da população. Desbravando a história do artesanato alagoano, é possível descobrir que se entrelaça com as próprias origens do estado, marcada pela miscigenação cultural dos povos indígenas, africanos e europeus que aqui habitaram.

Ao longo dos séculos, essa atividade floresceu com diversas expressões. O bordado filé, com seus desenhos geométricos e delicados, se tornou um símbolo do estado, sendo reconhecido como patrimônio imaterial de Alagoas. A renda de bilro, com sua complexa teia de fios entrelaçados, exibe a maestria das rendeiras. A cerâmica, com suas formas moldadas à mão e cores vibrantes, retrata a cultura local e a religiosidade do povo. A escultura em madeira, com suas figuras expressivas e detalhes minuciosos, põe à mostra toda a habilidade dos escultores.

Uma verdadeira galeria de arte, que narra e embala nossa identidade às margens dos nossos rios, mares, lagoas, serras e matas. Poderia ser poesia, mas é expressão cultural. E vem ganhando força e incentivos, transformando realidades, através do empreendedorismo.

Arte que inspira

Retratar uma história em linhas, uma cultura em formas, uma cidade em texturas não é uma tarefa fácil. Mas quem um dia achou que seria? Digamos que é preciso sempre um primeiro passo… e no caso do Mimos da Dona Peró, também, um empurrãozinho do destino.

Mais que uma marca, Dona Perolina, fundadora da escolinha de artes de Capela, em 1963, inspirou uma geração e atraiu talentos que a fizeram estampar coleções para além das suas aulas de pintura e bordado. É o caso de Luciana de Almeida Leite, que aos 13 anos, adentrou nesse mundo da arte, e quatro anos depois, aluna e mestre estreitaram a relação e trocaram figurinhas.

“Todos os sábados, eu ia para casa dela conversar. Ela contava as histórias dos bordados de enxoval de casamento, de enxoval de bebê que as pessoas da região e da capital encomendavam. Eu levava minhas pinturas para ela ver e dar dicas, e ela me emprestava tudo que tinha”, relembra Luciana.

Era o início de uma história a ser contada em linhas e tecidos. Em 2007, quando Dona Peró faleceu, o bordado à mão recém-aprendido pela aluna aplicada, começou a ganhar vida e a imortalizar essa técnica carregada de cultura e memórias.

A professora virou fonte de inspiração. A aluna assumiu a responsabilidade e se tornou líder da Associação de Bordadeiras de Capela. Com 22 associados, o grupo vem ganhando destaque com suas peças em feiras, galerias e vendas pela internet.

Essa é a trajetória da Luciana, mas poderia ser a do Paulo, da Cícera, da Maria ou de tantas bordadeiras-costureiras-rendeiras de Alagoas. Em geral, inicia-se com um conhecimento manual passado por gerações, carregado de personalidade, história e representação cultural, e num determinado momento, precisa se reconhecer, se reinventar e explorar novas oportunidades no mercado.

“O que vocês fazem que é diferente de qualquer outro bordado”? Essa é a pergunta-chave para o sucesso do negócio. Sim. Associativismo é empreendedorismo e precisa ser encarado como tal. Conduzir para essa reflexão e reconhecer o potencial do fazer artesanal para o mundo da moda também é um dos papeis do Sebrae Alagoas. 

Marina Gatto, analista da instituição, mantém esse compromisso. “Um dos exercícios que sempre faço com os grupos é questionar sobre o que tem ao seu redor, qual a potencialidade no território. Existem paisagens, existe alguma outra cultura, algum outro artesanato forte, alguma manifestação cultural, algum monumento, alguma história que possa ser contada?”, revela.

 

Primeiros passos

“Proativamente, ou sob demanda do agente municipal, vamos até as comunidades e povoados. Analisamos se aquele grupo tem uma potencialidade de mercado, se aquele produto ou técnica é realmente tradicional, se existe um trabalho conceitual, uma arte popular, enfim, a gente vê o valor histórico e cultural que está dentro dos produtos envolvidos”, esclarece Marina.

“É sempre a primeira conversa, o primeiro olhar de entender em campo, onde estão situados, onde vivem, quais são as problemáticas do ambiente, da família, do local que produz, da matéria-prima… Então, a gente faz uma análise para entender um pouco como podemos ajudar”, complementa a analista do Sebrae Alagoas.

Respeito e humildade. Não dá para chegar como convidado na casa alheia e querer mudar tudo de lugar! Sendo assim, o Sebrae se utiliza de um mapeamento com as principais técnicas e evidências do artesanato alagoano. 

O último documento publicado, em 2020, sinalizava a existência de seis tipologias de matérias-primas em todo território: rendas e bordados - cestaria e fibras vegetais - madeira - cerâmica - couro e peles - retalhos e tecelagem. Sendo as rendas, bordados, retalhos e tecelagem correspondentes a 50% dos registros no Programa do Artesanato Brasileiro (PAB), em Alagoas.

Naquele ano, ainda, o estudo indicava a existência de 48 grupos artesãos organizados, conforme critérios do PAB, distribuídos em 35 municípios. E, atualmente, Alagoas é o segundo estado do Brasil com o maior registro de artesãos com carteira formalizadas. 

 

Expertise e soluções adequadas podem fazer a diferença. Não implementar uma gestão profissional no negócio, respeitando as individualidades da sua arte, é ficar parado no tempo, sem perspectivas.

Marina Gatto confessa que, em geral, são levadas aos grupos orientações relacionadas a fluxo financeiro, finanças pessoais, finanças profissionais, questões de logística (como vão entregar o produto, qual o preço de frete, como inserir todos os custos desenvolvidos dentro do produto), formação de preço, marketing (inclusive, digital) e planejamento de vendas (onde devem distribuir, quem é a persona e o público-alvo, além de desenvolver estratégias de comercialização).

“Temos o respeito e cuidado de prepará-los na base da gestão, da produtividade, do ciclo produtivo, da matéria-prima, melhorias de acabamento, composição de cores, embalagem, e a partir daí, ajudamos na abertura de mercado. Sempre com a inovação em mente, sem perder de vista as tendências”, conclui Marina, explicando o processo de maturidade observado nos grupos que compõem a Cadeia Produtiva do Artesanato.

Se vale a pena abrir-se ao novo, mudar a rotina, se unir, planejar e implementar as melhorias? Esses foram os passos da Luciana, da Mimos de Dona Peró, que mobiliza um grupo em prol de um sonho comum, colocando as peças num patamar da moda; da Érika, da Associação das Artesãs do Pontal do Coruripe, que se achava um bicho do mato, mas se empoderou, ganhou autoestima e estabilidade financeira; da Ana Cristina, da Fulô.A, líder de associação que desejava ter uma marca própria, e não só atingiu seu objetivo, mas criou um grupo produtivo e formou seus dois filhos na faculdade; e da Lúcia, da Associação Mulheres de Fibra de Maragogi, advinda de um assentamento sem muitas perspectivas, aprendeu o trançado com a palha da taboa e o bordado filé, e hoje, conquista premiações e mantém sua família por meio do seu artesanato.

E não podemos deixar de mencionar a Alina, aquela menina sertaneja, que aprendeu muito cedo a bordar com as tias, e se apaixonou por esse mundo das agulhas e linhas. Fazendo dessa identidade regional, a sua marca, junto ao Coletivo de Mulheres Bordadeiras de Maceió, a Arteando.

 

Mosaico de talentos

As associações e cooperativas de artesanato em Alagoas, dentro da Cadeia Produtiva, desempenham um papel fundamental na organização, profissionalização e promoção do setor. Através do trabalho conjunto, essas entidades fortalecem a identidade cultural do estado e impulsionam o desenvolvimento socioeconômico das comunidades.

Em 2024, o artesanato alagoano se destaca como um dos mais vibrantes e promissores do Brasil, ostentando um rico mosaico de talentos e saberes ancestrais espalhados por toda região. São peculiaridades, técnicas, matérias-primas locais e identidade cultural que conquistam o mundo.

No Agreste alagoano, temos a simplicidade e a beleza rústica das peças, especialmente em couro e madeira, com destaque para Lagoa da Canoa; no Sertão, imaginem a Ilha do Ferro, com as esculturas em madeira e barro que falam tanto sobre aquela gente; chegando na Zona da Mata, nos municípios de Capela e União dos Palmares, nos deparamos com toda força e resistência modeladas no barro; no Litoral Sul, as cestarias com palha de taboa e ouricuri, lá de Feliz Deserto e Coruripe, trançando formatos únicos; navegando pela Região das Lagoas, nos deparamos com o bordado filé, tão vibrante, expressivo e exclusivo da nossa terra; e desembarcando no Litoral Norte, encontramos a fartura dos coqueirais que margeiam toda região, e claro, como em Porto de Pedras, o artesanato se apropria deste insumo e transforma em arte, com as cestarias em fibras de coco.

O reconhecimento da qualidade e da riqueza cultural dos produtos locais, aliado ao investimento em infraestrutura, tecnologia e qualificação profissional, abre um leque de oportunidades para o crescimento de toda Cadeia Produtiva do Artesanato em Alagoas.

 

Narrativas culturais no mundo da moda

Uma ‘agulhinha’ só, não faz uma coleção. Esse é o sentido de trabalhar em conjunto, aprimorar processos e gerar um valor agregado que jamais seria possível com a manufatura, ou o trabalho isolado e solitário daquele artesão na porta de casa.

“A gente vê um crescimento muito notável de pequenas marcas. Os ateliês vêm utilizando essa moda autoral e com coleções exclusivas, com o feito à mão, fazendo essa cooperação, essa cocriação com os artesãos daqui. E o Sebrae vem sendo a instituição articuladora, muitas vezes, dessa aproximação entre designers, artesãos e pequenos criadores”, considera Marina Gatto.

E se o assunto é artesanato incorporado na moda, como não falar do Renda-se?! Um projeto que nasceu do objetivo de fortalecer as manualidades, ressignificá-las para a contemporaneidade e fortalecê-las através de um trabalho com associação de design, assinaturas importantes, funcionalidades e sustentabilidade.

Alina Amaral

 

“Essas misturas associadas à ancestralidade é de fato a nossa diretriz, porque acreditamos que isso nos faz únicos como povo criativo”, destaca Alina Amaral, jornalista, especialista em moda e executiva do Renda-se.

Mas essa busca pelo autoral e respeito ao DNA cultural das comunidades não é recente no movimento da moda. 

“Começamos efetivamente organizados em 1996, com a criação de um calendário fixo, com o Morumbi Fashion (que depois se transformou em São Paulo Fashion Week), mas tínhamos pouco foco na moda autoral. Porém, havia sinais, como Alexandre Herchcovitch e outros estilistas mais no Sul e Nordeste. Na época, falava-se muito no Lino Villaventura, que tem uma característica profunda do artesanal. Mas o foco realmente, naquele momento, foi a indústria”, lamenta Alina.

Com o passar dos anos, o resto do mundo começou a fazer ode ao artesanal, ao feito-a-mão, entendendo que seria, de fato, uma das grandes novidades da moda, apropriando-se das suas identidades regionais e ancestralidades, fortalecendo a marca e buscando um diferencial.

“Então, nesse momento, ficava muito claro que o DNA de moda no Brasil precisava ser fortalecido. E hoje, entende-se que essas artesanias são, de fato, o que temos de mais profundo, mais identitário para a nossa moda, e o mercado está de olho no Brasil e na América Latina, e o Brasil, de olho no Nordeste, que é onde temos a maior quantidade de nomenclaturas”, registra a especialista Alina, ratificando a diversidade criativa da nossa região.

Atualmente, neste mercado mundial da moda, o Brasil é o segundo maior empregador. Ou seja, não é mais viável fugir das tendências ou ficar à mercê desta realidade.

 

Cenário promissor em Alagoas

A exemplo da Mimos de Dona Peró, a moda autoral também vem se destacando ao longo dos últimos anos, aqui em Alagoas. É um segmento em ascensão, pelo potencial criativo da nossa gente e, principalmente, por essa valorização da identidade cultural. 

Marina Gatto acredita que, por conta dessa riqueza criativa, muitos estilistas e designers estão se inspirando nessas tradições, artesanatos, utilizando as rendas e bordados como elementos na produção.

“Existe essa tendência de mercado, de voltar um pouco do slow fashion, um pouco do que é nosso, do que é cultural. Devido ao boom do digital, das tecnologias, hoje, as pessoas estão buscando um pouco o que acolhe, o que é nosso. Então, a moda autoral é o que leva isso ao mercado”, conclui a analista.

Sem falar que é uma produção mais sustentável, porque não visa à quantidade, mas a entregar produtos que tenham identidade, produtos feitos à mão, muitas vezes, com materiais ecológicos, como algodão cru, ou que impactem menos o meio ambiente.

“E a gente sabe que quando marcas começam a trabalhar marca autoral, exclusividade, identidade, ela tem um valor de mercado diferenciado. Então, é tendência e acredito que devemos ser e estar cada vez mais próximos desse cenário”, considera Marina Gatto.

Um pensamento compartilhado pela especialista Alina Amaral. 

“Há quase 30 anos de estudo da moda, enquanto comunicação, e hoje como marca, como negócio e como identidade, diria, principalmente a quem está iniciando, que fortaleçam as suas próprias narrativas. Num mundo de expectativas diversas, a gente sempre vai encontrar alguém ou um grupo que se identifique com o que fazemos. A associação com a tecnologia nos faz mais capazes de nos estabelecermos como um negócio. Estamos falando em técnicas ancestrais ressignificadas para a contemporaneidade”, pondera Alina.

Às vezes, é preciso voltar às nossas origens para reencontrar a nós mesmos! Já dizia o poeta Nelson Martins. E no artesanato, não é diferente. Resgatar a essência, cocriar e construir uma narrativa autêntica são fórmulas preciosas para o sucesso.

Para saber mais sobre a Cadeia Produtiva do Artesanato em Alagoas, acesse https://shre.ink/artesanatodealagoas