Quem acompanha o noticiário local percebe os inúmeros casos de estupro, todos os dias, com grande parte das vítimas sendo crianças ou adolescentes. Essa é uma realidade alarmante que assola Alagoas, assim como o caso de um homem, de 39 anos, preso no último dia 9 de julho, suspeito de estuprar a própria sobrinha de apenas nove, no município de Água Branca, região do sertão do Estado.  

A delegada Daniella Andrade, da Delegacia Regional de Santana do Ipanema, da Polícia Civil de Alagoas (PCAL), informou à época da detenção, que a mãe da vítima faleceu recentemente e os abusos começaram quando ela foi morar na casa dos avós maternos, local o qual o suspeito residia. Ele aproveitou o momento em que estava sozinho com a menina para cometer os abusos. 

“Com a mudança muito grande do comportamento da criança na escola, ela começou a receber acompanhamento e através disso foi descoberto que ela vinha sendo abusada”, informou a delegada Daniella Andrade. 

O delito cometido por quem deveria garantir proteção e cuidados ajuda a ilustrar os números dos boletins desse tipo de ocorrência registrados em Alagoas, à qual o CadaMinuto teve acesso por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). 

Segundo dados exclusivos cedidos pela Chefia Especial do Núcleo de Estatística e Análise Criminal (CHENÉAC), da Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP), em quase quatro anos, 3.927 pessoas foram vítimas deste tipo de crime em Alagoas. Para seis em cada dez crianças ou adolescentes negras estupradas, o crime ocorreu dentro de suas próprias casas. 

O levantamento indica que 68,24% das vítimas são meninas negras — a soma de pretos e partos, segundo classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, 16,55% são brancas, 0,23% indígenas e 0,15% amarelas. 

A maioria delas está na faixa etária de 10 a 13 anos — período crucial de descobertas e crescimento, marcado pela perversidade do abuso e pelas lembranças que as vítimas carregarão por toda uma vida.

Em relação à localidade, Maceió aparece com o maior número dos casos, seguido de Arapiraca, Rio Largo, Marechal Deodoro e União dos Palmares. 

Os dados expõem não apenas a extensão da brutalidade enfrentada por essas jovens, mas também apontam para um padrão doloroso de vulnerabilidade. 

Veja números por ano 

- 2021 - 25,11% - (986);

- 2022 -  29,17% - (1.145);

- 2023 - 30,34% - (1.191);

- 2024 até junho - 5,40% - (605).

 

Arte: Jean Albuquerque

Boletins de ocorrência por estupro em Alagoas, conforme o número de total de crimes de 2021 até junho de 2024.

 

Casos aumentaram no país nos últimos anos

A pesquisadora, advogada e doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, Andréa Albuquerque, defende que os casos aumentaram nos últimos anos em todo o país, não apenas em Alagoas. 

“Esses números alarmantes não são observados apenas em Alagoas. Em 2022, o Brasil teve o maior número de estupros contabilizados na sua história, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública”, destaca a especialista. 

Para ela, todos esses crimes contra mulheres, a exemplo de feminicídios, agressões e estupros, aumentaram e são alarmantes nos últimos anos. “No caso do número de estupros de meninas, apenas cinco estados tiveram queda: Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Paraíba.”

Albuquerque destaca que esse crescimento se deve a alguns fatores, que vão da falta de verbas orçamentárias federais para o enfrentamento à violência contra mulheres, entre os anos de 2019 a 2022, até o crescimento de movimentos conservadores no país. 

 

Pesquisadora, advogada e doutoranda, Andréa Albuquerque - Foto: Arquivo Pessoal 

 

Maior parte das vítimas são meninas negras 

Os dados da Polícia Civil de Alagoas, assim como já mencionado, revelam que a maioria das vítimas são meninas negras, entre 10 e 13 anos. Segundo a especialista, não apenas ocorre no Estado, mas no país. 

Ao utilizar os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ela destaca que as crianças de 0 a 13 anos representam a maioria das vítimas, com 61,4%, sendo 33,2% entre 10 e 13 anos. E ainda, as meninas negras são o maior grupo, com mais de 56,8%.  

“Se pensarmos que o Brasil é o 4º país no ranking do casamento infantil e que os estupros de vulneráveis acontecem quando as mães estão fora de casa trabalhando e as meninas estão fora da escola e sem atividades supervisionadas, percebemos que essas condições estão relacionadas a fatores sociais e estruturais de classe e raça, além do sexual”, acrescenta. 

A doutoranda ressalta que esse tipo de crime contra crianças ou adolescentes ainda ocorre, principalmente, por parte de familiares da criança (71,5%). “Por isso, a casa é o ambiente onde esse tipo de crime mais acontece, em 72,2% dos casos. A maioria desses estupros ocorre durante o dia, ou seja, geralmente quando a mãe ou cuidadora não está em casa.” 

Subnotificação em AL 

Segundo a advogada, apesar do crescente aumento dos casos no país, treze estados diminuíram os números entre 2022 e 2023, Alagoas está entre eles, com redução de 17,78%, segundo o Mapa da Segurança Pública do Governo Federal. 

“Precisamos lembrar que os números mostram apenas os casos notificados. Há, ainda hoje, uma imensa subnotificação de crimes de estupro, com estimativa de que menos de 13% dos casos chegam a ser denunciados”, pontua. 

De acordo com ela, ainda que os números apresentem redução de casos no Estado, há a realidade da subnotificação, sobretudo, quando a vítima é uma criança. 

“Muitas não sabem que estão sofrendo abuso sexual, têm vergonha ou medo de falar porque seus algozes são parentes e pessoas próximas. Para essas, a compreensão e verbalização da violência sexual só acontece anos depois”, acrescenta. 

Ausência de dados

A reportagem solicitou dados no período de 2019 a junho de 2024 sobre esses tipos de casos, mas a PCAL informou que não possui os números porque a instituição passou por uma transição no sistema de Boletim de Ocorrência (BO).

“O solicitante requer dados anteriores ao ano de 2021, no entanto, informamos não ser possível encaminhar especificamente os referidos dados, para atender ao pleito, pois esta instituição policial passou por transição de sistema de registro de BO, e os dados do sistema antigo não estão disponíveis para coleta”, respondeu. 

Para entender os casos e repercutir os dados obtidos, entramos em contato com a Secretaria de Segurança Pública de Alagoas (SSPAL), que informou que a demanda é de natureza investigativa da Polícia Civil de Alagoas (PCAL) e precisa ser respondida pelas delegacias especializadas, a exemplo da Delegacia da Mulher e Delegacia dos Crimes Contra Crianças e Adolescentes da Capital (DECCCA).

O CadaMinuto entrou em contato com a PCAL, em dois momentos diferentes, mas não obteve êxito até a publicação deste texto. 

Saiba como denunciar 

Para atender às denúncias relacionadas a crianças e adolescentes, a delegacia especializada funciona das 8h às 18h, no seguinte endereço: Rua Abdon Assis Inojosa Andrade, no bairro da Jatiúca.

As denúncias podem ser feitas na delegacia pessoalmente, pelo telefone 3315-9941 ou pelo e-mail decccac@pc.al.gov.br. Também é possível realizar denúncias em qualquer delegacia do Estado. O site da Polícia Civil lista o número de telefone de cada delegacia. Acesse clicando aqui!

Existe um posto da Polícia Civil no Hospital da Mulher, o qual é possível denunciar crimes contra crianças e adolescentes, além de realizar exames de corpo de delito pelo Instituto Médico Legal (IML) e registrar Boletim de Ocorrência (BO). O endereço é Av. Comendador Palmeira, no bairro do Poço. O telefone é 3131-1350.

O Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos, recebe denúncias anônimas de qualquer lugar do país, com atendimento 24 horas por dia, encaminhando os casos aos órgãos competentes no município de origem.

O Disque Denúncia 181 atua no combate à violência contra idosos, mulheres, pessoas com deficiência e crianças e adolescentes, através do núcleo de violência doméstica.

O número da Polícia Militar é o 190, que pode ser acionado gratuitamente e não é necessário se identificar.