Onze trabalhadores alagoanos residentes em Penedo, Alagoas, denunciaram, em meados de maio, estar sendo submetidos a trabalho análogo à escravidão em uma fazenda no interior do Espírito Santo.

A denúncia veio à tona após a circulação de um vídeo nas redes sociais, no qual uma mulher relata as condições adversas enfrentadas por esses alagoanos desde sua chegada ao Estado sudestino para realizar a colheita de café, que não correspondiam ao que fora combinado na contratação.

"O dono da fazenda nos ameaça, dizendo que podemos ir embora a qualquer momento, mas retém nossos documentos e ameaça chamar a polícia para prender quem sair", relatou ela.

Ela também denunciou que os trabalhadores estavam endividados com o proprietário, devendo quase R$ 11 mil. "Sem café, não conseguimos pagar a dívida nem receber dinheiro. Precisamos comer, e a cada dia a dívida só aumenta", disse a cozinheira.

Uma reportagem do Intercept Brasil, publicada em 2 de junho, ajuda a entender por que situações como essa persistem e continuam sendo uma realidade para muitos brasileiros, mesmo em 2024. 

A investigação revela que o custo médio para manter trabalhadores em condições degradantes e inaceitáveis é de R$ 4.115,89 em verbas rescisórias. Em 2023, auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego encontraram 3.190 pessoas em situação análoga à escravidão em todo o país.

Em Alagoas, segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, 920 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão entre 1995 e 2023. 

Além disso, de 2002 a 2023, 1.619 trabalhadores alagoanos foram resgatados de situações de trabalho escravo em outros estados brasileiros. Apenas em 2023, 79 trabalhadores foram identificados em condições análogas à escravidão em Alagoas, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Em entrevista ao CadaMinuto, o advogado trabalhista Victor Cavalcante comentou sobre a persistência desse problema, destacando a pobreza e a extrema pobreza como fatores principais que alimentam essa problemática em Alagoas e em outras regiões nordestinas. Essa vulnerabilidade torna os trabalhadores alvos fáceis da exploração por parte de empregadores.

"Infelizmente, a pobreza é extensa em nosso Estado, e a vulnerabilidade de muitos trabalhadores é vista como uma oportunidade pelos maus empregadores", afirmou Cavalcante. Ele também enfatizou que as verbas rescisórias pagas aos trabalhadores resgatados são insuficientes para reparar os danos sofridos.

"Cavalcante destaca ainda que, apesar de a legislação trabalhista brasileira ser uma das mais protecionistas do mundo, sofre com a falta de investimento na fiscalização, comprometendo sua eficácia.

"As fiscalizações são muito bem planejadas e executadas. O que ainda falta é investimento para abranger todos os segmentos empresariais que praticam esta conduta recorrente. A cada ano, alguns setores são alvos de intensificação na fiscalização, mas é crucial que todos sejam fiscalizados simultaneamente para alcançar a abolição desejada", disse.

Além das medidas preventivas e de fiscalização, a conscientização sobre os direitos trabalhistas entre os trabalhadores migrantes é crucial. Segundo Victor Cavalcante, a migração coletiva de trabalhadores é geralmente monitorada pelos sindicatos, que verificam as condições de trabalho. 

No entanto, a migração individual representa um desafio significativo, pois muitos trabalhadores desconhecem seus direitos e os procedimentos a seguir em caso de irregularidades. "Investir em informação é essencial. O acesso aos sindicatos, à inspeção do trabalho e à advocacia pode ser a solução", afirmou Cavalcante.

"Realidade perversa e criminosa"

O superintendente Regional do Trabalho e Emprego em Alagoas, Cícero Filho, descreve o trabalho análogo à escravidão como algo estarrecedor. "Sobretudo no século XXI, é inadmissível que trabalhadores ainda sejam submetidos a uma forma de escravidão contemporânea. Aqui em Alagoas, tratamos o tema com prioridade, atenção e ações efetivas para eliminar essa chaga", afirmou.

Segundo Cícero, as vítimas são geralmente pessoas necessitadas em busca de trabalho, que, na ausência de oportunidades em suas regiões, aceitam propostas aparentemente vantajosas, com supostas boas remunerações e condições de trabalho.

"Isso desperta interesse, mas rapidamente revela-se uma realidade diferente, perversa e criminosa", explicou.

Ele destacou que o órgão realiza diversas ações para prevenir esse tipo de situação, incluindo a proposta de criação de um aplicativo de combate ao trabalho escravo. Existe também o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo, estabelecido pela Portaria n.º 3.484/21 do Governo Federal, que visa promover atendimento especializado estruturado em três estágios: Da Denúncia ao Planejamento, Resgate e Pós-Resgate da Vítima.

A Portaria estabelece as ações a serem realizadas durante o resgate e no pós-resgate. O órgão gestor do SUAS local deve mobilizar equipes de proteção social para o acolhimento adequado dos resgatados, conforme orientações técnicas. Eles devem ser priorizados em serviços de saúde, geração de renda e formação profissional.

Resgates

No ano passado, a Superintendência Regional do Trabalho em Alagoas resgatou 79 trabalhadores de condições degradantes no estado. As áreas mais vulneráveis estão relacionadas às atividades em pedreiras, construção civil e trabalho agrícola, segundo Cícero.

"Estamos em processo de reestruturação. Nunca é demais lembrar que o Ministério do Trabalho chegou a ser extinto pelo governo anterior, o que naturalmente trouxe consequências negativas. Apesar disso, em 2023, primeiro ano do novo governo e da gestão do ministro Luiz Marinho à frente do MTE, foram resgatados 3.190 trabalhadores, o maior número registrado nos últimos 14 anos, o que demonstra a eficácia da política pública de combate ao trabalho escravo", compartilhou o superintendente.

Cícero enfatiza que é crucial que as denúncias sejam feitas: "Para que possamos combater esse mal, essa modalidade de crime repugnante. Na nossa gestão aqui em Alagoas, adotamos uma política de tolerância zero com patrões que submetem trabalhadores a condições análogas à escravidão. Não iremos permitir esse absurdo e agiremos com todo rigor da lei".

"A fiscalização contínua é de fundamental importância”

O Ministério Público do Trabalho em Alagoas (MPT-AL) desempenha um papel essencial no combate ao trabalho análogo à escravidão. Além de monitorar os casos de resgate, o MPT-AL atua na prevenção dessa prática por meio de diversas medidas. 

Em um caso recente, 12 trabalhadores alagoanos foram resgatados de uma fazenda no Espírito Santo, citado na abertura desta reportagem, o MPT acompanhou todo o processo desde a denúncia até o retorno dos trabalhadores ao município de Penedo, investigando também se houve aliciamento por parte de intermediadores.

O procurador do MPT em Alagoas, Rodrigo Alencar,  ressaltou a importância da fiscalização contínua e da colaboração entre entidades públicas e privadas para prevenir que situações como essa se repitam. 

"A fiscalização contínua é de fundamental importância, por diversas razões, para prevenir casos de trabalho escravo. A presença do Estado no campo desestimula a prática do trabalho escravo e impede que se prolonguem no tempo e no espaço", afirmou.

Ele também destacou que o pagamento das verbas rescisórias e do seguro-desemprego aos trabalhadores escravizados não é suficiente para compensar os danos sofridos: "É necessário buscar o pagamento de indenizações pelos danos morais individuais e coletivos, buscando a efetiva reparação e o caráter pedagógico da medida."

O MPT-AL está também estabelecendo a Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE/AL), em parceria com o Governo do Estado, para propor mecanismos de prevenção e enfrentamento dessa problemática. 

Além disso, o Projeto Estratégico de Capacitação da Rede de Atendimento às Vítimas de Escravidão Contemporânea (PRECAV) está sendo implementado para capacitar profissionais e garantir o apoio necessário aos trabalhadores resgatados.

Canais de denúncia e assistência

Trabalhadores que suspeitam estar vivendo em condições de trabalho análogas à escravidão podem denunciar através dos canais disponibilizados pelo Ministério Público do Trabalho em Alagoas (MPT-AL). Para facilitar o acesso à justiça e garantir proteção aos direitos trabalhistas, o MPT-AL oferece algumas opções de contato:

Telefones: Entre em contato pelos números (82) 3201-5000 em Maceió e (82) 3521-9250 em Arapiraca. Esses canais estão disponíveis para receber denúncias e oferecer orientações sobre como proceder em casos de trabalho análogo à escravidão.

- Site: Acesse o site oficial do MPT-AL em prt19.mpt.mp.br para fazer denúncias online e obter mais informações sobre direitos trabalhistas e combate ao trabalho escravo.

- Aplicativo MPT Pardal: Utilize o aplicativo MPT Pardal, disponível para todos os celulares, que permite o envio de vídeos e fotos das irregularidades diretamente para o Ministério Público do Trabalho. Essa ferramenta facilita o registro de evidências e agiliza o processo de investigação.

*Estagiária sob supervisão da editoria