“Sempre foi homem de praia e sol”, dizia os amigos tempos mais tarde ao comentar sobre seus gostos e desgostos. O Brasil de 1980, ano que nos mudamos em seis para Jacarecica, vivia sob um regime militar pouco notado pelas bandas do Nordeste, com tanto sal e mar azul para celebrar. A economia em crise, devido à alta inflação e ao endividamento externo, se despedia do “milagre econômico" da década anterior para dar lugar aquela que conquistaria cadeira cativa em nossa história: à recessão. Época também em que surgiram os falsos movimentos sociais, pressões por anistia aos comunistas e abertura política partidária. Cinco anos mais tarde a ditadura terminaria com a eleição do mineiro com cara de vovozinho Tancredo Neves e dávamos início ao período de “redemocratização”, palavra que nenhum brasileiro vivo com senso de justiça tem o direito de escrevê-la a não ser entre aspas.

 

Foi nesse quinquênio que crescemos felizes - eu e mais três irmãos - sem crise, repressão, violência, tanques nas ruas ou toques de recolher. “De 64 até aqui só levei uma única carreira do exército na Rua do Comércio”. Nunca se soube o motivo. Meu pai, que no ano do golpe gozava de seus 19 anos, desconfiava que o motivo era o tédio instalado no quartel do 59º batalhão de infantaria de Maceió. Enquanto isto, nossa rotina seguia com a normalidade da maioria das famílias conservadoras daquela época de ouro, onde podíamos ficar até tarde da noite perambulando pelas ruas do bairro litorâneo, dividindo nossas tarefas entre os rachas incansáveis de futebol, paixões efêmeras e a tensa brincadeira levada muito a sério de polícia e ladrão.

 

Enquanto o Brasil via uma explosão de sucessos musicais com a ascensão do rock nacional, liderado por bandas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, e Titãs, nós escutávamos - também - na vitrola Panasonic o Djavan, Elba Ramalho, Chiclete com Banana e a mesclada coleção do rei do baião. Toda aquela potência de voz arrancada do vinil ecoava logo cedo nos corredores da casa, nas primeiras horas de sábado e domingo. Outro rei, o Roberto, era como um hino. O movimento da lambada, com o hit inaugural "Chorando se Foi" de Kaoma, só veio surgir no finalzinho da década, seguido na sequência por outro rei, o da lambada, registrado no cartório como Raimundo, mas que todos conheciam como Beto Barbosa. Em casa fazíamos concurso para ver quem remexia melhor os quadris.

 

Já por ali, na casa dos nove ou dez anos, meu irmão mais velho, que sempre demonstrou um talento sobrenatural para o forró, continuamente se saia melhor nos concursos caseiros. Quando o verão de Jacarecica encostava, sucessivamente fazíamos companhia ao meu pai, que abria o portão sem dizer uma palavra, e atravessava a rua de um bairro quase intransitável, de bermuda baixa, a sunga ocultada, chinelo de tiras, óculos aviador e nu até a cintura, pois a camisa ele levava pendurada no ombro, sagradamente, como um amuleto da sorte. Tínhamos que correr para acompanhar seus passos largos, indiferentes, ligeiros e insólito.

 

Aos domingos, geralmente, não se sabia para onde ele iria, e apenas o filho mais velho tinha o privilégio ocasional de fazê-lo companhia. Mal-acostumado, pois já fazia duas semanas que não desfrutávamos de sua companhia. Quando meu pai foi até o portão, ele discretamente o seguiu: - Volte. Desta vez você não vai. Olhando-o com um olhar ameaçador, ele esperou pelo veredicto final. Sem sucesso. Quando a matriarca - estrategicamente- se juntou à conversa, ele ameaçou: - Quer que eu diga já? Olhando para ele com seus olhos redondos e ligeiramente inocentes. Afinal, o que mais precisava ser dito? E mais um domingo lá estava ele, desfrutando da batatinha-frita, do refrigerante e do sorvete.