Devo muito a Chico Buarque de Holanda o meu amor pela música, principalmente pela MPB, um selo de qualidade que o mundo todo reconhece.

Para que se tenha uma ideia temporal da minha relação com a obra desse apaixonado torcedor do Fluminense, o primeiro disco que eu comprei em toda a minha vida foi Construção, um conjunto de canções apontado, até hoje, como uma das obras-primas da música brasileira. Tinha eu treze anos de idade e me deparava, então, com um universo poético no qual mergulhei e do qual nunca mais quis sair. 

Falar da obra do Chico hoje pareceria a todos redundante, tamanho o reconhecimento alcançado por ele nesses dias de celebração dos seus 80 anos. Sem poder me calar, no entanto - o silêncio seria um ato de traição -, decidi recontar a história de como o talentosíssimo compositor mostrou ainda muito jovem que era também um sujeito de raro caráter. Ocorreu no ano em que o mais lembrado de todos os festivais de canções no país revelou uma geração marcante e definitiva de artistas - até hoje insuperável.

Chico Buarque de Holanda entrara na disputa por conta de uma provocação do "Todo Redondo", alcunha que ele dera ao baiano Gilberto Gil, com quem convivia naqueles idos de 1966, em São Paulo. O amigo de Caetano compusera Ensaio Geral para inscrever no II Festival de Música Popular Brasileira. O autor de Todo o sentimento ainda não levava a sério a condição de compositor. Tivera uma passagem no ano anterior, praticamente despercebida, no Festival da Excelsior. Já havia gravado Pedro Pedreiro, Olê-Olá, Sonho de Carnaval - músicas que a minha geração canta até hoje -, mas tudo ainda era uma brincadeira de estudante.

Naquela conversa com Gil, numa mesa de bar, o fantástico baiano desafiou o "Carioca" e lhe mostrou o que chamou de "canção da vitória", de intenso conteúdo político, o que era bem próprio dos artistas oriundos do movimento estudantil. Chico, por sua vez, já demonstrava certo fastio em relação à música de protesto. Daí nasceu A Banda, que mobilizou a juventude paulista e quase a do Brasil inteiro (naquele tempo não tínhamos a comunicação instantânea, que só veio décadas depois.)

Era, então, Chico Buarque - aí pelos 22 anos de idade -, um relapso estudante de Arquitetura, que queria mesmo era namorar, tocar o violão e a vida no ritmo que eles pedissem. É bem verdade que trazia no currículo uma prisão por roubo de carro (adolescente), e, claro, a ascendência "nobre" na intelectualidade brasileira: era “o filho do escritor Sérgio Buarque de Holanda", autor de Raízes do Brasil, amante do país e das mulheres.

(Em 1940, aquele que se tornaria “o pai do Chico” e o poeta Carlos Drummond trocaram tabefes, na sede do Ministério de Educação, no Rio de Janeiro, disputando os carinhos de uma mulher. Não sei quem levou a melhor.)

Na primeira noite do Festival, o público foi ao delírio com Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros. A inesperada interpretação de Jair Rodrigues - "Prepare o seu coração..." - já deixou no público a sensação de que esta seria a música vencedora. Nem a belíssima Um Dia, de Caetano Veloso, de lirismo raro e uma das canções, para mim, mais bonitas de Caetano em todas as suas muitas fases, foi capaz de abalar a preferência do público. 

O calendário marcava 27 de setembro. 

No dia seguinte, seria a vez de Nara Leão apresentar a ingênua e envolvente A Banda. Surpresa, de novo: o público não conteve a euforia. Nas semanas que se seguiram, entre um brado e outro de "abaixo a ditatura", a estudantada se dividiu cantando Vandré e Chico. Ninguém ficava fora da disputa. O Ensaio Geral, de Gil, desaparecera no meio do caminho, mesmo sendo interpretada pela maravilhosa e já famosa Elis Regina.

Quando chegou, o 10 de outubro se deparou com um Geraldo Vandré agitado e um Chico Buarque sereno e, como sempre, boêmio. A finalíssima do Festival virara uma decisão de Copa do Mundo. Depois do encontro palco/plateia, a expectativa: quem levaria o primeiro lugar? 

Foi então que aconteceu. 

Sabendo que os jurados lhe davam a vitória, Chico procurou o diretor da Record, Paulo Machado de Carvalho, para lhe dizer:

 - O júri pode decidir o que quiser, mas se A Banda ganhar, eu devolvo o prêmio.
 
Paulinho, assim conhecido, quase teve um troço. Foi à sala onde se reunia o corpo de jurados e contou a ameaça. O placar entre os julgadores já estava fechado: A Banda, sete votos; Disparada, cinco. Mas prevaleceu a rebeldia do chico de Sérgio Buarque. Resultado oficial: 6x6. Todos, inclusive o público, comemoraram como puderam naqueles tempos difíceis - e que depois ficaram ainda piores.

Ali nascia o homem Chico Buarque de Holanda, que, para a felicidade geral da Nação, resolveu assumir a condição de gênio maior da Música Popular Brasileira (ao lado de Tom Jobim, seu ídolo e Maestro Soberano). 

O mais extraordinário nessa história é que o verdadeiro resultado do II Festival da Record só foi revelado quase 40 anos depois pelo pesquisador Zuza Homem de Mello (A Era dos Festivais), que guardou os votos daquela noite de 10 de outubro de 1966. Desde então, Chico Buarque de Holanda nunca fez qualquer referência pública sobre o que aconteceu no Teatro Record - nem em entrevistas, nem em livros, nem em pesquisas acadêmicas, nada. 

Aqui, ao pé de ouvido: dificilmente qualquer um de nós resistiria tanto. Mas aquele era - e é - o Chico. 

(Parafraseando Nietzsche: Sem Chico a música brasileira seria um erro.)