Em diversas cidades brasileiras, a paisagem urbana vem se moldando cruelmente. A arquitetura hostil sob o pretexto de combater o vandalismo, a mendicância ou simplesmente "manter a ordem", gestores públicos e privados têm implementado medidas que visam desestimular a permanência de grupos sociais vulneráveis em espaços públicos.

Essas medidas, além de serem ineficazes no combate aos problemas que se propõem a resolver, violam direitos básicos como o direito à livre circulação, ao descanso e à dignidade humana.

Em Maceió não é diferente, a DPE/AL (Defensoria Pública do Estado de Alagoas) precisou de uma ACP (ação civil pública), em 2023, movida pelos defensores públicos do Núcleo de Proteção Coletiva, Daniel Alcoforado e Isaac Souto.

A ação foi motivada após protesto do MNPR (Movimento Nacional da População em Situação de Rua), realizado final de junho de 2023, contra a obra de paisagismo do viaduto do bairro de Jacarecica, localizado na parte baixa de Maceió, realizada pela Alurb (Autarquia Municipal de Desenvolvimento Sustentável e Limpeza Urbana), que impedia o acesso e a permanência de grupos vulneráveis e pessoas que vivem no local.

Segundo a DPE, os atos da Prefeitura de Maceió ferem a Lei nº 14.489, de 21 de dezembro de 2022 (Lei Padre Júlio Lancellotti), que proíbe técnicas construtivas hostis em espaços públicos, além de não respeitarem normas de acessibilidade e segurança viária previstas no CTB (Código de Trânsito Brasileiro).

A defensoria pública do Estado obteve, em 26 de março de 2024, uma liminar que impede a gestão municipal de implementar medidas de arquitetura hostil em espaços públicos da capital, além de operações de recolhimento forçado de bens e pertences e de retirada forçada de pessoas em situação de rua, sob pena de multa no valor de R$ 50 mil reais, proferida pelo juíz Manoel Cavalcante de Lima Neto Juiz de Direito, da 18a Vara Cível da Capital / Fazenda Estadual. 

A liminar ainda assegura “que sejam oferecidos o aluguel social para os demais frequentadores do local mediante comprovação formal da oferta, a ser juntada nos autos, no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de multa de R$ 30.000,00”, diz trecho da sentença. 

Para entender os impactos desse tipo de construção e as ações tomadas para garantir o seu impedimento, o CadaMinuto ouviu arquitetos, representantes de órgãos públicos e a gestão municipal.

O que é a arquitetura hostil e os impactos em Maceió 

O arquiteto e urbanista, presidente do IAB/AL (Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de Alagoas), coordenação do BrCidades Maceió e conselheiro estadual do CAU/AL, Pablo Fernandes, de 43 anos, explica que apesar da popularização do termo 'Arquitetura Hostil', a nomeclatura correta deveria ser 'Construção Hostil', já que "a arquitetura é feita para pessoas. Se não for para pessoas então não é Arquitetura”. 

 

Arquiteto e urbanista, presidente do IAB/AL, Pablo Fernandes, de 43 anos - Foto: Nichole Dellabianca

 

"Obras de exclusão de pessoas em situação de rua de possíveis locais aptos para se tornarem moradia é uma prática que opera impossibilitando a permanência desse grupo social nos espaços urbanos, podendo ocorrer através do uso de materiais como pedras, pinos metálicos, blocos de concreto, pela manipulação de layouts de projetos que direcionam o uso do espaço e até por meio da jardinagem", esclarece. 

O presidente do IAB/AL afirma ainda que é comum presenciar construções hostis em fachadas de prédios comerciais, o que dificulta a permanência de pessoas sob as marquises desses estabelecimentos. Além disso, outra prática se trata da instalação de mobiliário urbano que desestimula uma pessoa a deitar em um banco de praça.

"Em Maceió, um caso emblemático é a 'obra paisagística' sob o viaduto localizado em Jacarecica, pois utiliza-se de estruturas que tiveram como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua que ocupavam o viaduto para fins de moradia", recorda. 

Para ele, essa obra não atende o Estatuto da Cidade na promoção do bem coletivo e do bem-estar dos cidadãos, não garante o pleno exercício das funções sociais urbanas e "não atende às premissas de inclusão social e à prevalência do interesse coletivo sobre o individual, fundamentadas no Plano Diretor de Maceió".

Para o arquiteto e urbanista, Dilson Ferreira, de 50 anos, a arquitetura hostil criminaliza a pobreza e desumaniza pessoas em situação de rua e vulneráveis. "Amplia e reforça a percepção e visão da população em geral sobre as pessoas em situação de rua como perigosas que precisam ficar longe, ampliando  preconceitos, desumanização de seres humanos taxados como ameaças a cidade, pessoas sujas e drogadas quando na verdade deveria ser o contrário, eles precisam de ajuda. Eles precisam de ajuda social". 

 

Arquiteto e urbanista, Dilson Ferreira, de 50 anos - Foto: Reprodução 

 

Ainda segundo Ferreira, as barreiras físicas e outros elementos considerados 'hostis' podem reforçar estereótipos negativos e a ideia de que essa população é perigosa, suja ou indesejável. "Isso pode levar a um aumento do preconceito e da discriminação contra essa população. A arquitetura hostil criminaliza, normaliza a exclusão social e a vulnerabilidade humana", reforça. 

DPE cobra ações da gestão municipal 

O defensor público, do Núcleo de Proteção Coletiva, da DPE/AL, Daniel Alcoforado destaca que o propósito da ação judicial movida no ano passado contra a obra de pasaigismo no viaduto do bairro de Jacarecica tem o intuito de adequar a obra a critérios técnicos, urbanísticos e sociais, que não impeça o acesso de grupos socialmente vulneráveis a utilizar o equipamento público para abrigo ou moradia temporária. 

Após a liminar, a DPE também enviou, no último dia 22 de maio, ofício solicitando providências e esclarecimentos da SEMDES (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Primeira Infância e Segurança Alimentar) cobrando a concessão e informações sobre o auxílio-moradia no município de Maceió para pessoas em vulnerabilidade social, que se encontram desalojadas ou desabrigadas. 

"Este é um benefício social que protege muito poucas pessoas em relação ao número de desabrigados no município. Além disso, o valor pago é insuficiente para garantir uma moradia digna para as famílias. O valor (R$ 250,00) foi instituído pelo Decreto Municipal 7.699/2014 de 2014 e nunca teve atualização", esclarece. 

Em resposta, a Prefeitura de Maceió, por meio do Serviço Social do Setor de Benefícios Eventuais da CGBAS (Coordenação Geral dos Benefícios Assistenciais), informou que 2.693 famílias recebem o auxílio-moradia. 

A gestão também afirma que o processo de entrega do benefício é realizado de forma criteriosa, incluindo visitas domiciliares para entender melhor a situação de cada beneficiário. Já em casos de vulnerabilidade extrema, o benefício pode ser estendido por mais 12 meses além do período inicial de 6 meses.

Ações do MPAL no combate a construções contra vulneráveis 

À reportagem do CadaMinuto, o promotor de justiça Jorge Dória, da Promotoria de Urbanismo do MP/AL (Ministério Público do Estado de Alagoas), enviou documento que reúne as ações do órgão estadual no combate a esse tipo de construção na capital. 

A promotoria desde 2020, mesmo antes da norma conhecida como Lei Padre Júlio Lancellotti, tem atuado para coibir a prática da arquitetura hostil. Para Dória, a respeito do tema, é importante diferenciar a ação que configura a hostilidade de um projeto urbanístico de alcance social.

O promotor destaca ainda o trabalho da Força Tarefa criada pelo Ministério Público, que reúne as Promotorias de Urbanismo e Direitos Humanos, além da Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial, para combater a violência contra a população em situação de rua e defender seus direitos fundamentais.

Ele ainda argumenta sobre a necessidade da implementação de políticas públicas robustas e eficazes, com foco na garantia de moradia digna, emprego, renda, acesso à saúde, educação e proteção contra a violência para essa população. 

"A implementação das políticas públicas e de proteção dessas pessoas é o que se deve buscar [...] Todo mundo sabe que o local para morar, uma casa, seja de que forma for, é o começo de uma vida digna, porque a pessoa vai ter onde ficar com sua família."

O que pode ser feito para tornar o ambiente urbano inclusivo 

Ainda segundo Pablo Fernandes, o ambiente urbano deve ser acolhedor e inclusivo para toda a população, independente de classe social e isso deve ocorrer por meio da qualidade no projeto de espaços livres e de uso público. 

"No caso da população em situação de rua, estamos lidando com um grupo heterogêneo de pessoas que vivem na extrema pobreza, com vínculos familiares inexistentes ou fragilizados e sem moradia convencional regular, utilizando-se de logradouros públicos como espaço de moradia e de sustento, além de casas de abrigo para pernoite ou moradia provisória", defende o arquiteto. 

Além disso, o especialista pontua que é necessário ainda aplicar o que está previsto em lei, seja a Lei federal conhecida como "Padre Júlio Lancelloti" ou a liminar expedida pelo Justiça de Alagoas que proíbe a prática de construções que afastam a presença de vulneráveis. 

"No entanto, não adianta 'tapar o sol com a peneira'. Para chegar ao cerne da questão, torna-se necessário defender o Direito à Cidade em sua forma mais ampla, de modo a garantir o direito à habitação, à cultura, ao lazer, Educação, Saúde, mobilidade e infraestrutura urbana, assim como garantir toda e qualquer política pública que venha proporcionar qualidade de vida à população", argumenta. 

Já Dilson Ferreira defende algumas medidas para tornar o espaço da cidade mais acolhedor, a exemplo de áreas de descanso diário, abrigos públicos e locais de acomodação para os vulneráveis. "Programa de habitação no centro e transformar essas áreas hostis em áreas de esportes e serviços básicos, como alimentação, higiene, internet e aconselhamento psicológico e médico mental e físico", pontua. 

"Maceió poderia ter espaços públicos multiusos que poderiam ser usados por toda a população em situação de rua, inclusive, vítimas desta arquitetura hostil, incluindo áreas para eventos comunitários, mercados de agricultores e outros usos que promovam a integração social e não um ambiente urbano segregador, frio, discriminatório e perigoso fisicamente. Uma arquitetura feita para machucar pessoas vulneráveis", defende o arquiteto. 

Outro lado 

Em contato feito pelo CadaMinuto, a SEMDES (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social) esclareceu, em nota, detalhes sobre os serviços de assistência social e a situação das ações judiciais relacionadas à arquitetura hostil em Maceió.

Segundo a SEMDES, equipes de Abordagem Social realizam buscas ativas diárias para oferecer acolhimento às pessoas em situação de rua. Essas pessoas são encaminhadas à Casa de Passagem Manoel Coelho Neto, no bairro Poço, e às Casas de Passagem Familiar e de Ranquines, localizadas nos bairros de Jaraguá e Benedito Bentes. Esses centros têm o objetivo de ajudar as pessoas a saírem das ruas e a terem acesso aos serviços socioassistenciais e a outras políticas públicas setoriais.

Além disso, de acordo com a pasta, um dos serviços oferecidos é o aluguel social, que atende às necessidades específicas de cada usuário. No entanto, a SEMDES destacou que muitas vezes, o auxílio oferecido pela Assistência Social é recusado por algumas pessoas que preferem permanecer nas ruas. 

A reportagem também contatou a Seminfra (Secretaria Municipal de Infraestrutura) que informou que nos últimos quatro anos não enfrentou ações judiciais relacionadas à arquitetura hostil. 

De acordo com a pasta, eles estão abertos ao diálogo com a Defensoria Pública e outros órgãos para atender às necessidades da cidade de forma colaborativa. A Seminfra também esclareceu não ter realizado intervenções no viaduto da Jacarecica.

Sobre a obra de paisagismo realizada no viaduto do bairro Jacarecica, a Alurb (Autarquia Municipal de Desenvolvimento Sustentável e Limpeza Urbana) informa que, em uma reunião há cerca de dois meses, com a presença do Ministério Público e outros órgãos da Prefeitura, ficou constatado que as intervenções realizadas pelo órgão não são consideradas hostis, tendo em vista que apenas a reforma da calçada e a colocação de plantas ornamentais foram realizadas.

“Para fazer denúncias e solicitações, o cidadão deve ligar diretamente nos canais da Central de Monitoramento da Alurb, que atende pelo 0800 082 2600 ou pelo whatsapp 98802-4834”, acrescenta. 

*Estagiária sob supervisão da editoria