Nesse sábado, dia 08 de junho, o Brasil amanheceu mais triste com a passagem de sua maior economista. A icônica Maria da Conceição Tavares nos deixou com mais de noventa anos de idade, parte considerável dedicada a pensar e lutar por um país mais justo e desenvolvido.
Foi através da tradição histórico-estruturalista, seguindo os passos de autores da envergadura de Caio Prado Jr., Celso Furtado, Raul Prebisch, Ignácio Rangel e outros, que Conceição Tavares firmou sua produção acadêmica e científica com a preocupação de compreender o Brasil, suas idiossincrasias e, principalmente, formar os jovens das ciências sociais.
Autora de obras que se tornaram clássicas, como Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro (1979), A Economia Política da Crise: problemas e impasses da política econômica brasileira (1982), Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil (1985) e O Grande Salto para o Caos: a economia política do regime autoritário (1985), somente para ficar nessas.
Tenho um carinho enorme por este último livro porque através dele fui apresentado a Conceição Tavares, quando estudava a disciplina economia brasileira, no curso de ciências econômicas da Universidade Federal da Paraíba, campus de Campina Grande. Escrito com José Carlos de Assis, aquele livro disseca a política econômica dos governos militares e os seus escândalos financeiros.
Entretanto, foi um artigo de Conceição publicado em 1985 no Brazilian Journal of Political Economy, intitulado A Retomada da Hegemonia Americana, que marcaria para sempre minha relação com essa grande pensadora desenvolvimentista. Esse artigo foi anos depois publicado em um livro organizado por ela e José Luis Fiori (Poder e Dinheiro: uma economia política da globalização, Ed. Vozes, 1997). Ao contrário do que defendia o saudoso Theotônio dos Santos, outro gigante da economia política internacional, Conceição Tavares argumentava nele que a política econômica norte-americana adotada na passagem da década de 1970 para 1980, fazia parte de uma estratégia clara e objetiva de retomada do seu poder, assentada no fortalecimento do dólar e na sua força bélica. Testemunhei esse debate, ao vivo e a cores, na reunião anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia (Anpec), realizada em 1997 na cidade do Recife.
Foi nesse evento que conheci pessoalmente Conceição Tavares. Com o livro dela e Fiori em mãos, tive o privilégio de bater um papo e comentar minhas impressões tanto sobre seu texto seminal quanto em relação ao debate que ela travou com Theotônio. O encontro foi encerrado com ela escrevendo na contracapa do meu livro: Para Fábio, antigo aluno, com a amizade da velha “mestra”.
Outro momento que nos encontramos não foi presencial, muito menos tão agradável.
Foi por volta de 2006. O governo Lula, em seu primeiro mandato, adotou uma política macroeconômica que contrariou importantes quadros intelectuais do PT. Sob a regência de Antônio Palocci no Ministério da Economia, a política econômica seguia os trilhos da ortodoxia e provocava duras críticas dos economistas heterodoxos. Conceicão Tavares puxava o movimento. De tão aborrecida que estava, ela publicou um artigo no Jornal Folha de São Paulo, em 19 de abril de 2004, se despedindo do debate macroeconômico, dizendo: “Deixo temporariamente de lado as minhas memórias de cinco décadas de história brasileira e mundial celebradas neste 2004. Tento concentrar-me na conjuntura e retomar mais uma vez o debate sobre política macroeconômica, apesar do cansaço que ele me provoca por causa da recorrência aos vícios ortodoxos e às explicações convencionais”. [pode conferir o texto aqui]
Porém, em dezembro de 2006, a Revista Carta Capital publicou uma longa entrevista com ela. Desta vez, o discurso era completamente diferente e deixava transparecer um grande otimismo com os rumos do governo. O tom era muito diferente do que víamos nas cartas aprovadas, por exemplo, nas duas últimas reuniões anuais realizadas pela Sociedade Brasileira de Economia Política (2005 e 2006), principal espaço, à época, do pensamento crítico e da heterodoxia econômica do país.
Incomodado com essa entrevista, com o contexto da economia brasileira naquele período e comparando ao que a “velha mestra” tinha escrito em seu artigo na Folha de São Paulo, em 2004, aconteceu que em uma bela noite, numa mesa do tradicional Bar Vesúvio, em Ilhéus, na Bahia, entre algumas tulipas de chopp e bolinhos de bacalhau, conversei com um grande economista e amigo. Também, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, que tinha colaborado ativamente com a proposta de programa econômico do PT, em 2002, e colega de Conceição Tavares. Na conversa ele me desafiou escrever um artigo crítico. Não sei se foi a decisão mais sábia, mas aceitei e pouco tempo depois o texto estava publicado no Jornal do Conselho Regional de Economistas do Rio de Janeiro (Corecon/RJ), com o título “Sob o Manto da Concórdia” (edição n. 199, fevereiro de 2006. Pode conferir o texto aqui)
Tempos depois, fiquei sabendo que ela, ao estilo, não ficou nada satisfeita com o artigo. Admito que fui muito injusto e duro, especialmente na conclusão do texto, um grande equívoco causado pela energia de um, na época, jovem rebelde.
Essa também foi uma de suas heranças. O que seria também de nós sem a rebeldia de uma Maria da Conceição Tavares.
De ontem para hoje, recebi muitas mensagens e menções nas redes sociais de ex-alunos e alunas homenageando nossa maior economista. Isso demonstra o quanto ela foi importante na minha formação e de muitas mais pessoas.
Vá em Paz, minha querida e “velha mestra”.