Assim como uma sofisticada sinfonia, as cidades são obras complexas e dinâmicas, compostas por diversos instrumentos — ruas, avenidas, parques, praças, casas, edifícios e pessoas que lhes dão vida. Para a melodia ser harmoniosa e bem executada, necessita da presença de um maestro: o Plano Diretor.
O documento garante que a cidade cresça mediante diretrizes que considerem o desenvolvimento urbano, as regras de ocupação do solo, a infraestrutura, a mobilidade, a habitação, a presença ambiental e outros fatores que promovam o bem-estar da população.
Essa realidade não é a da capital alagoana, que conta com 957.916 (quase 1 milhão) de habitantes, segundo o censo demográfico de 2022, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já que o Plano Diretor de Maceió está defasado há quase 10 anos.
Para entender os impactos da defasagem do documento instituído pela Lei Municipal nº 5.486, em 30 de dezembro de 2005, na gestão do então prefeito Cícero Almeida, que deveria ser atualizado a cada dez anos, em 2015, o Cada Minuto ouviu especialistas, representantes da sociedade civil e a promotoria responsável do Ministério Público do Estado de Alagoas (MPAL).
Defasagem e os efeitos do afundamento do solo em Maceió
O doutorando em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Adson Ney Amorim, que pesquisa a relação entre urbanização e conflito urbano, afirma que a ausência de diretrizes sobre a utilização do solo ameaça a permanência dos mais pobres e favorece o mercado imobiliário e a Braskem, que provocou a desocupação de 15 mil imóveis e o deslocamento forçado de 60 mil moradores de cinco bairros.
“No caso da Braskem, há um acordo de compensação firmado entre a prefeitura e a empresa. Esse acordo, por exemplo, trata do uso do solo, mas quem deveria legislar sobre isso seria o planejamento urbano, através do Plano Diretor. Diante disso, torna-se urgente debatermos medidas legais”, defende.
O Coordenador do BrCidades Maceió, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de Alagoas (IAB/AL), Conselheiro Estadual do CAU/AL, Pablo Fernandes, destaca que com a defasagem, a cidade passa a seguir parâmetros que já não servem mais.
“Seu produto é firmado através de um pacto transformado em lei, com o objetivo de definir uma década de planejamento urbano de cidades com mais de 20 mil habitantes, de modo a garantir o direito à cidade e a consequente melhoria na qualidade de vida da população”, ressalta o coordenador.
Fernandes também cita o afundamento de solo causado pela Braskem e, questiona, em meio a ausência de novas diretrizes, qual será o destino dos bairros afetados pela extração de sal-gema. “O que fazer para suprir a carência de moradia, vias públicas, eixos estruturantes, escolas, postos de saúde, comércio, praças, áreas verdes, demais espaços de uso público e toda a infraestrutura urbana que existia naquele território?.”
“Quem mais perde é a população porque você passa a ter uma série de dificuldades no seu cotidiano, de coisas mais simples como a mobilidade urbana que você não tem praticamente, até ao valor imobiliário que, por exemplo, com a especulação tá lá no topo”, defende Amorim.
O pesquisador acredita que o plano não avança este ano, já que as eleições municipais se aproximam. “A prefeitura até aqui não enviou nenhuma proposta para Câmara e obviamente, em ano eleitoral não vai enviar. Além disso, o documento requer debate amplo e participação de movimentos sociais, da universidade, de lideranças comunitárias, representação de classe, etc”, acrescenta.
Encarecimento da cidade e as construções desgovernadas
Além disso, Amorim também menciona o alto valor do metro quadrado na capital alagoana. Pesquisa recente do Índice FipeZAP de Venda Residencial, desenvolvida pela DataZAP+ aponta Maceió com o maior aumento no preço dos imóveis em 2023, representando alta 16%.
A pesquisa também lista os oito bairros mais caros do Nordeste — a capital figura a lista com quatro — sendo eles: Pajuçara, Ponta Verde, Jatiúca e Jacarecica. O Metro quadrado mais caro, no caso de Pajuçara, fica em média por R$ 10.294.
O integrante do BrCidades Maceió ressalta ainda que os bairros Ponta Verde, Jatiúca e Pajuçara são projetados para a construção de casas e vem sendo substituídas por prédios. “Se antes tínhamos quatro famílias em quatro lotes, hoje temos de 10 a 20 vezes mais. O que fazer com a chegada de tantos carros?”.
“Esses prédios promovem a impermeabilização de 100% do lote. Atualmente, com 5 minutos de chuva forte, esses 3 bairros ficam alagados. Resta dúvida sobre o porquê?”, questiona Fernandes ao citar a importância de um Plano Diretor atualizado.
Além disso, o arquiteto também se preocupa com o aumento dos empreendimentos no Litoral Norte de Maceió. “Estão querendo construir torres de 20 andares à beira-mar na rua São Pedro, em Garça Torta. Se hoje o trânsito na via já é caótico, imagina com a chegada desses empreendimentos! Será que isso é razoável? Para onde vai todo o esgoto? Será que o sombreamento da praia é bom para o meio ambiente?.”
MPAL move ação para garantir atualização
A Promotoria de Urbanismo do Ministério Público do Estado de Alagoas (MPAL) moveu ação civil pública em 2020 para cobrar da Prefeitura e da Câmara Municipal de Maceió a atualização do Plano Diretor.
Ouvido pelo Cada Minuto, o promotor de Justiça Jorge Dória afirma que o documento “é um dos principais senão o único instrumento de desenvolvimento urbano capaz de realmente ensejar um planejamento de uma cidade, sendo fundamental ao crescimento e melhoria da ordem urbanística”.
Além disso, o representante do MPAL reitera que “para que a cidade alcance a sua função social, que é uma exigência da Constituição Federal de 1988 e da legislação [a exemplo do Estatuto da Cidade, Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001], o Plano Diretor é imprescindível para o bom desenvolvimento das cidades”.
O Estatuto, no art. 2º, determina que a política urbana tenha o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. A partir do direito a cidades sustentáveis, a terra urbana, a moradia, o saneamento ambiental, a infra-estrutura, o transporte e serviços públicos, como prevê o parágrafo primeiro.
Além disso, a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. A cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social”, como determinam os parágrafos II e III, do art 2º.
Dória defende ainda que é inaceitável e lamentável que o documento criado em 2005 continue sem atualização, principalmente tendo em sua dinâmica de ordem urbanística o afundamento de solo causado pela Braskem.
“Foi em função e por conta dessa preocupação, que o Ministério Público, desde maio de 2020, moveu inquérito Civil para cobrar a implementação das ações necessárias para essa atualização. O MP vem fazendo essas cobranças, já fez várias recomendações, várias tratativas, já participou de algumas dinâmicas de reuniões”, informa o promotor.
Linha do tempo sobre a elaboração do documento
O presidente do IAB/AL recorda que em setembro de 2015 foi dado início ao processo de revisão do documento, momento em que a prefeitura de Maceió estava sob o comando do Rui Palmeira, que realizou três oficinas e a eleição do Conselho do Plano Diretor de Maceió composto por 15 representantes divididos entre 5 segmentos da sociedade.
Entre esses representantes estavam, os movimentos sociais e associações de moradores, entidades de ensino e científicas, ONGs, entidades de classe e institucional. Também foram elaborados documentos pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Alagoas (CAU/AL), PPGAU-UFAL e Abrace a Garça (Movimento pelo Direito à Cidade).
“Esse processo perdurou até agosto de 2016, quando ficou acordado com a sociedade que seria entregue uma minuta com 15 dias de antecedência (sem a temática ambiental) para a realização de uma última audiência onde a população iria debater a questão do Meio Ambiente e aprovar o documento final (audiência pública essa que nunca aconteceu)”, lembra.
Em 2018 teve a última reunião do Conselho do Plano Diretor. No mesmo ano, já com o documento atrasado por mais de dois anos, foi descoberto que Maceió estava afundando por conta da exploração de sal-gema relizada pela mineradora Braskem.
Em 2020, a Câmara de Maceió chegou a realizar oito audiências públicas. Já entre novembro e dezembro de 2023, a prefeitura de Maceió abriu seleção de edital para seleções de instituições que iriam integram o novo conselho do Plano Diretor de Maceió. A primeira reunião está marcada para o dia 22 de maio deste ano.
“É preciso vontade política para melhorar as condições e a qualidade de vida da população. Para isso, a sociedade precisa participar ativamente. E repito: se há algum documento sobre o PD, esse documento já não nos serve mais. Hoje já deveríamos estar pensando na 4ª edição do Plano”, acrescenta Pablo Fernandes.
O que diz a Prefeitura de Maceió
Por meio de nota, a Prefeitura de Maceió informou que o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Maceió (Iplan), ao final de 2023, divulgou um edital convocando entidades da sociedade civil que desejassem participar do Conselho do Plano Diretor. Além disso, destaca que os membros foram publicados no Diário Oficial e a reunião de retomada está marcada para o próximo dia 22 de maio. Veja trecho da nota:
“O Iplan está comprometido em desenvolver um Plano Diretor que expresse de forma clara e precisa as exigências espaciais e sociais de Maceió. Ressalta-se a importância de que o projeto a ser enviado à Câmara Municipal contemple todas as necessidades identificadas, assegurando que o Plano seja amplamente representativo e atenda aos interesses da comunidade.
Além disso, destaca-se a singularidade da situação de Maceió em comparação com outras cidades. A extração de sal-gema resultou no afundamento e na subsequente desocupação de cinco bairros. Essa circunstância sublinha a necessidade de incorporar visões e políticas externas no Plano Diretor. O objetivo é promover o desenvolvimento urbano de maneira que sejam gerados benefícios tangíveis para o dinamismo da cidade e a qualidade de vida de seus habitantes.”