Dez anos atrás, vivi uma experiência que, sem querer me gabar, pouca gente nesse mundo já viveu. Não foi por mérito pessoal, que fique claro, mas obra do acaso. Por duas vezes, fiz parte do grupo de jurados de um Tribunal de Júri Popular. Primeiro, vem a convocação, que é comunicada pessoalmente por um representante da Justiça, diretamente no endereço do escolhido. Depois, você se apresenta no Fórum da Capital.
No dia marcado, descobri que são 25 pessoas convocadas. O juiz que comanda os trabalhos realiza o sorteio de 7 pessoas daquele grupo. Defesa e acusação têm o direito de rejeitar até dois nomes, sem apresentar qualquer motivo. Para rejeitar outro escolhido, acima dessa cota, promotor e advogado precisam expor uma justificativa. Cabe ao magistrado acatar ou não as alegações. Como se chegou a esse formato, aí não sei.
A convocação inicial geralmente ocorre para mais de um julgamento. No meu caso, foram três. Em uma das ocasiões, não fui sorteado para ficar entre os 7 que formam o Conselho de Sentença. Nos outros dois casos, sim. E lá estava eu como parte de um grupo com uma responsabilidade que até hoje me espanta: julgar uma pessoa acusada de homicídio; absolver ou condenar; decidir o futuro da vida de alguém.
Começa o julgamento. Nos dois casos – em dias diferentes, é claro –, do início da tarde até umas oito da noite, tudo estava resolvido. As alegações da promotoria e da defesa, com a presença do réu, tomam a maior parte do tempo. Depois, os jurados vão para uma sala, com o juiz, promotor e advogado. É a hora da decisão. O veredito é resultado de um conjunto de respostas dadas pelos julgadores a questões apresentadas pelo magistrado.
As respostas – por escrito, individuais e secretas – se resumem a um “sim” ou “não” para cada uma das questões. As folhas de papel com a decisão de cada um dos jurados são depositadas numa urna. Em seguida, o juiz faz a leitura do que o conselho respondeu – e anuncia o resultado final do julgamento. Nos dois casos, votei pela absolvição dos réus, o mesmo entendimento da maioria. Eles saíram livres do Fórum de Maceió.
Baseado no que ouvi dos promotores que faziam a acusação, e nas alegações da defesa, não tive dúvida sobre minha escolha. Em um dos julgamentos, eram dois promotores que se revezavam no discurso acusatório. Durante horas, foi um desfile de teses sem qualquer prova material. Vi de perto o que é o aspecto teatral de um Tribunal de Júri. Pareceu evidente que aqueles dois rapazes queriam ganhar pela retórica.
E era isso mesmo. A defesa, além de demonstrar a fragilidade dos autos para condenar, expôs a encenação verborrágica da promotoria. A dupla de promotores queria pintar o réu como um monstro – mas para isso recorria a frases feitas, numa tosca tentativa de convencer pela emoção. O problema é que a estratégia apelativa não tinha base na realidade. Tive a impressão que apenas a defesa havia lido o processo.
O réu já estava preso havia alguns anos, à espera do julgamento. Era negro e pobre. Não tinha como pagar advogados. Contou, portanto, com um defensor público. E, ao contrário do que o senso comum ainda pode pensar, atuou como se fosse receber milhões. Mas não era nada disso. Sua dedicação e competência estavam a serviço dos que não têm nada. Convenceu o júri com alegações técnicas, com ênfase e clareza.
Não lembro o nome do defensor – que estava nos dois julgamentos dos quais participei. Eu o parabenizei na saída do Fórum. O juiz que presidiu o Tribunal do Júri foi Geraldo Amorim, que também agiu de modo elogiável. Mais de uma vez repudiou pegadinhas da promotoria. Com histórico de tantas distorções, o sistema de Justiça brasileiro vive a fomentar meu ceticismo geral e irrestrito. O que vi no Júri Popular dá um refresco.
(Resolvi escrever este texto ao ler duas notícias, no começo deste mês. Reproduzo as chamadas. A primeira: “Legítima defesa: Defensoria Pública garante absolvição para casal acusado de tentativa de homicídio em Porto Real do Colégio”. E a segunda: “Defensoria Pública garante absolvição de cidadão acusado injustamente de tentativa de homicídio contra guarnição policial”).