Em dias de guerra e tragédia, vamos de uma polêmica menor. A prefeitura do Rio de Janeiro informa que 1 milhão e 600 mil pessoas estiveram na praia de Copacabana, para ver Madona exibir todo o seu talento como artista de caraoquê e playback. Parte interessada em propagar as dimensões grandiosas do evento, a Globo comprou a numerologia oficial. Os dados superlativos também servem aos patrocinadores.
Como se sabe, moças e rapazes correram ao Rio para ver de perto aquela que elegeram como referência maior de suas vidas. Os súditos pareciam em êxtase em entrevistas comoventes nos telejornais. Eles também reproduzem a matemática da prefeitura. Acreditam que fizeram parte de uma epifania que reuniu mais de um milhão e meio de almas seduzidas pela encenação de rebeldia juvenil. Mas essa conta fecha?
É nessas horas que a gente lembra por que o jornalismo é tão importante quanto o oxigênio. Quando o arrastão da unanimidade parece intocável, é exatamente aí que a imprensa deve agir. Diante do oba-oba que uniu todas as tribos – de bolsonaristas a “louquinhos” que vivem de mesada –, a Folha foi investigar. E descobriu inconsistências na tabuada de multiplicação. Muita gente foi à Copacabana. Mas nem tanto assim.
O jornal recorreu ao Datafolha, ao Google e a fotos aéreas para fazer um cálculo. Seguindo critérios técnicos, reconhecidos nos centros de pesquisa e por especialistas, a reportagem cravou um número bem inferior ao da propaganda oficial: o espaço ocupado no show comporta no máximo 875 mil pessoas. Ou seja, praticamente a metade da conta do prefeito Eduardo Paes e da Riotur. O festeiro Paes reagiu com piada.
A reação do mandachuva carioca fortalece o material da Folha. Não tem o que responder. Isso me lembra que, a cada ano, a Globo reproduz a fantasia numérica dos donos do bloco Pinto da Madrugada. Este ano, inventaram “um público superior” a 400 mil foliões. Veja bem, isso é quase metade da população de Maceió. É uma mistura de chute e jogada de marketing. De onde sai essa conta, não se sabe.
Duvidar sempre! Este é um princípio para todo jornalista. Quando o tema abordado envolve cifras, números e estatística, é perigo na certa. Com apuração pra valer, sai o transe festeiro – de qualquer ritmo – e entra a precisão dos dados. É uma chatice, eu sei, para quem quer apenas celebrar. Mas lembro outra beleza do jornalismo: incomodar.