O maior cineasta brasileiro em ação tem 78 anos, mais de 50 filmes e não para de produzir. Júlio Bressane lançou o primeiro filme em 1966, um documentário sobre a iniciante Maria Bethânia com duração de 30 minutos. Uma cópia restaurada pode ser vista no YouTube. A partir daí, começaria uma trajetória única, em reação ao celebrado Cinema Novo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues. Longe da pegada política e social, o diretor explora a vertigem, o delírio, a loucura.

É o que ele faz nos primeiros longas a partir do fim dos anos 60. Matou a Família e foi ao Cinema é o exemplo mais forte na artilharia inicial de um rebelde até hoje indomável. Neste e nos filmes seguintes da década de 70, Bressane se firma como inventor do Cinema Marginal, com Rogério Sganzerla, diretor do clássico O Bandido da Luz Vermelha. Nas telas, a classe média, a cidade, tipos desorientados, obsessões, ruínas.

Mas ele não ficou refém do rótulo. E é preciso ressaltar que estamos diante de um criador obcecado pela linguagem – afinal, o que importa na arte. Se você disser ao diretor que um bom filme é o que “conta uma boa história”, ele pode sofrer um colapso. Reação compreensível, eu diria. Sua criação nos convida à contemplação com jogos de palavras e imagens que desafiam as convenções narrativas e formas consagradas.

A partir dos anos 80, ele engata uma produção que põe nas telas temas da música popular e da literatura, numa releitura particular de Machado de Assis, Oswald de Andrade, Nietzsche e Padre Vieira. Nessas obras, transforma Caetano Veloso e o poeta Haroldo de Campos em “atores”. Aliás, aqui também temos uma visão completamente única do que se entende por interpretar. Bressane desconstrói a representação.

Dos anos dois mil para cá, ele parece refinar sua técnica em obras como Filme de Amor, Cleópatra, Educação Sentimental, Garoto e Sedução da Carne. A Câmera se demora no detalhe de um cenário filmado como se fosse uma pintura. Ou explora a expressão imóvel de personagens em cenas nas quais os silêncios revelam mais que a fala. A dimensão sensorial do cinema levada ao extremo está entre os princípios do diretor. 

Nos trabalhos recentes, os traços definidores da estética Bressane se afirmam e se renovam. Não, ao contrário do cinemão, não há “uma boa história” sendo contada. Não há história nenhuma. Seus personagens – algumas vezes, dois ou três apenas – não dramatizam um enredo. Não há truques apelativos de mistério ou suspense, de aventura adolescente para adultos, de adrenalina para rebeldes de acampamento.    

Como diria Augusto de Campos em relação à poesia, Júlio Bressane faz o cinema da recusa. É um transgressor além da banalidade do termo nas mãos de “lacradores” das telas. Transgressão não é produzir firulas sob medida para militantes de iconoclastia fake. Isso é com Tarantino. A arte do diretor brasileiro incomoda, causa estranheza, testa nossos modos de ver, de ouvir, de sentir. Por isso ele é um solitário desde sempre.

Mas a vanguarda eterna, digamos assim, cobra o preço. Este é um tipo de filme que as salas brasileiras não comportam. Nesse sentido, Bressane é o gênio de um cinema invisível. Embora reverenciado em festivais pelo mundo, objeto de estudos e debates, o grande público ignora sua existência. É da vida. Não será o ibope que decidirá o valor de uma obra de arte. Fosse assim, estaríamos perdidos. Ele não parece se importar.

Entre os filmes mais recentes está Capitu e o Capítulo, uma abordagem sem igual ao universo de Machado de Assis. Esqueça o enredo conhecido. Bressane jamais segue o roteiro fácil da previsibilidade. São seis atores em cena num trabalho que pode ser visto como uma síntese dos recursos do diretor. Fazendo digressões sobre escolas literárias e poetas, Enrique Diaz, como Casmurro/Machado, é a glória (foto). 

Leme do Destino, do ano passado, ainda não consegui ver. Mas já encarei as 7 horas de A Longa Viagem do Ônibus Amarelo, também de 2023, uma espécie de balanço estético do autor. Pelo conjunto da obra, é de Júlio Bressane, um homem velho, o cinema mais radicalmente novo no Brasil do século 21. O que não deixa de ser uma ironia do destino, a combinar com uma linguagem fora da ordem, ontem e hoje.