Com as eleições se aproximando, grupos políticos e lideranças começam a movimentação para fechar alianças e viabilizar candidaturas. Nesse contexto, um prefeito em busca do segundo mandato joga com as armas que a tradição lhe confere: o titular da cadeira tem orçamento em caixa e cargos a lotear. Num lance inesperado, ele fecha acordo com aquele que representava a mais aguerrida oposição. Um “jovem idealista”, candidato a vereador, e a velha raposa esquecem as diferenças, em nome dos interesses em comum.
Pelo Brasil raso e profundo, em mais de 5 mil e 500 municípios, o panorama descrito acima deve estar sendo replicado, com as devidas adequações, às cores locais. Em gradações de estilo e tonalidade, você conhece esse enredo. Poderia até dar um filme. E deu. Curral (foto), no cardápio da Netflix, está entre os melhores títulos do cinema nacional lançados nos últimos anos.
A história se passa em Gravatá, região do agreste pernambucano. Na estreia como diretor de um longa-metragem, o cineasta Marcelo Brennand fez um golaço. Com talento inquestionável, sintetiza as mazelas que marcam a história política do país. Longe da panfletagem que geralmente contamina esse tipo de produto no mundo da arte, não temos o maniqueísmo de mocinhos e bandidos. Aqui, ninguém se salva.
Numa comunidade que sofre com a falta de água potável, o velho caminhão-pipa é moeda de troca numa relação corrompida entre as autoridades e o povaréu. O período eleitoral exacerba os métodos cristalizados na rotina de todos por ali. Na maior naturalidade, cabos eleitorais e seus patrões combinam o jogo sujo para garantir a compra de votos.
Arranjos espúrios, ameaças, chantagem e violência rodam a engrenagem que se materializa em outro arquétipo nacional: o cadastro clandestino de eleitores. No dia da votação, transporte e alimento amarram o nó que faltava na confecção do cabresto. A 50 reais por cabeça, os candidatos do “curral eleitoral” esperam as urnas na confortável posição de virtualmente eleitos.
Roteiro, direção de atores, diálogos, fotografia e escolha de planos e enquadramentos – em tudo, o filme é uma preciosa aula de cinema. O veterano José Dumont arrebenta no papel de um prefeito que resume as misérias da política na vida real. O ator Thomás Aquino (de Bacurau e Pedágio, entre outros) mostra por que já cravou seu lugar entre os grandes de nossa dramaturgia.
Mas eles não são os únicos a brilhar. Sem recorrer ao exagero, mas também sem cair na armadilha de um naturalismo artificial, o elenco inteiro combina veemência e contenção na medida exata. Uma façanha e tanto. O excelente filme de Marcelo Brennand é cinema que enfrenta a realidade brasileira sem concessões à militância festiva – como tem de ser em toda obra de arte.