Terminei de ler, em pouquíssimo tempo, o livro Sempre Paris: crônica de uma cidade, seus escritores e artistas (Companhia da Letras, 2023), da jornalista, tradutora e escritora Rosa Freire D’Aguiar. 

Rápido porque além de estar em férias, passar os olhos no que Rosa escreve e como é um bálsamo para os dias atuais, dominado pelas frivolidades cotidianas, espalhadas pelas redes sociais.

Dividido basicamente em dois blocos, no primeiro Rosa elabora um grande memorial de sua passagem pela capital francesa e suas interconexões com o resto do mundo, através do exercício da sua profissão de jornalista, enquanto correspondente internacional, nas décadas de 1970 e 1980, primeiramente na Revista Manchete do Adolpho Bloch, depois na IstoÉ, dirigida pelo jornalista Mino Carta.

Da sua chegada à Paris ao aculturamento francês, aberto pelas portas dos cafés, livrarias e principais praças onde as manifestações populares eram frequentes, Rosa nos apresenta o clima efervescente daquelas décadas pós-1968, quando a contracultura e os movimentos questionadores da sociedade moderna eclodiram, tendo a França como palco central na Europa.

Em sua longa crônica, a jornalista Rosa demonstra que esteve muito próxima de personalidades que influenciaram os destinos da política, cultura e artes do último terço do século XX. Ainda muito jovem conseguiu galgar espaços profissionais na Cidade das Luzes. Em 1981 chegou a viajar com nada mais nada menos que François Miterrand, durante sua campanha rumo a Presidência da República, ela no banco do carona e ele na poltrona de trás do veículo. Esteve no grupo de jornalistas que embarcou em um dos voos inaugurais do avião supersônico Concorde, em janeiro de 1976.

Em meados da década de 1980, ela seguiu outro caminho alternativo ao jornalismo, dedicando-se, com a mesma competência, à produção de livros e traduções de clássicos da literatura mundial, a exemplo de Montaigne, Céline e Marcel Proust, além de organizar o espólio intelectual do seu marido, Celso Furtado, o maior pensador do desenvolvimento e subdesenvolvimento econômico da América Latina. Os dois últimos livros organizados por ela, Celso Furtado: diários intermitentes, 1937-2002 e Celso Furtado: correspondência intelectual, 1949-2004 (ambos pela Companhia das Letras, 2019 e 2021, respectivamente) são registros fundamentais da vida, obra e diálogos de Furtado com outros importantes personagens. Esses últimos livros trouxeram à tona preocupações, temas e teses que se somam aquelas já clássicas e pronunciadas em sua vasta obra.

Segundo um de seus entrevistados na segunda parte do livro, o escritor francês Georges Simenon, “o jornalismo é uma porta aberta para o mundo. Em poucos anos, um jornalista acumula experiência que outros levam anos para adquirir, e nem sempre conseguem” (pg.208). Rosa não passou poucos anos no ofício. Foram pelo menos três décadas e a importância e grandiosidade do seu trabalho estão sintetizados em seu livro. Além do que já mencionei, an passant, da primeira parte, na segunda registra-se um conjunto de entrevistas com personalidades importantes e interessantes, das mais diversas áreas de atuação. Nessas entrevistas, o leitor tanto pode mergulhar no clima da época e também observar com várias discussões são tão atuais e relevantes para nossa época. 

Difícil não ficar inquieto diante do pensamento indignado de Alain Finkielkraut, que Rosa escolheu para abrir a série de entrevistas. É um soco no estômago. Sua ácida crítica à evolução dos meios digitais e das novas tecnologias, tudo isso subvertendo o conceito de cultura, a empobrecendo, é de uma atualidade fenomenal. Uma entrevista inédita inclusive, nunca antes publicada. Fica aqui uma pitada de acidez crítica: “Vivemos a utopia da cretinização. É uma loucura, pois as pessoas pensam que hoje, ao conseguirmos inventar máquinas geniais, estamos mais inteligentes” (p. 131). 

Aliás, Rosa nos brinda com mais três entrevistas inéditas. Com os escritores argentinos Ernesto Sabato e Júlio Cortázar, realizadas em 1981 e 1978, respectivamente, e com o filósofo francês Michel Serres, feita em 1991. 

Diante do recrudescimento das guerras e conflitos contemporâneos, como não ficar atônito diante do que falou Sabato: “O mal é uma constante da condição humana” (p. 157). E ele, como matemático e físico, que trabalhou no laboratório de Irene Joliot-Curie e testemunhou a fissão atômica que desembocaria na bomba nuclear, não tinha razão de ser tão otimista com a ciência e racionalidade sobre os domínios absolutos da humanidade. Preocupação compartilhada por Michel Serres, para quem “a especialização nas ciências sem o contrapeso das humanidades, leva à barbárie […] O rigor, a precisão, a tecnologia podem nos fazer esquecer o objetivo de nossas ações, podem levar a loucura da razão” (p. 245). Ora, esses mesmos assuntos são discutidos em recente livro publicado por Daron Acemoglu e Simon Johnson, Poder y Progresso: nuestra lucha milenaria por la tecnologia y la prosperidade (Ediciones Deusto, 2023). 

Na entrevista com o romancista francês, Romain Gary, de 1975, o leitor logo se identifica com um tema atualíssimo: a guerra entre Ucrânia e Rússia. Quando interpelado por Rosa sobre o futuro do império soviético, ele afirmou 14 anos antes da queda do Muro de Berlim: “Um dia a União Soviética vai explodir, ou por um conflito com a China ou por um conflito nas próprias repúblicas que tendem a reivindicar a independência. Pense que existem 80 milhões de ucranianos que não se sentem russos” (p. 304). Estava completamente correto em sua segunda hipótese. Independentemente das razões atuais, o conflito entre esses dois países reflete, ainda, um processo longo e duradouro em curso, envolvendo a autonomia e liberdade versus território e dominação entre os dois países. 

O que dizer mais uma vez da atualidade das palavras de Gary ao deslocarmos nossas lunetas para o Brasil recente, quando vivemos a ameaça de grupos de extrema-direita que levantaram bandeiras e ainda fazem apologia aos símbolos e signos do fascismo. O “fascismo não passou de uma atroz exploração da idiotice humana”, falou na entrevista (p. 307). Para ele, em séculos anteriores a exploração e injustiças eram praticadas em nome de um direito divino. Havia, portanto, obedecia a uma certa razão. Mas, em pleno século XX, esses processos, segundo ele, aconteceram sob o manto das mentiras que não tinham nenhuma sustentação, nem divina tampouco racional. “Vivemos uma época de completo desprezo pela verdade, uma época em que nenhuma causa é inteiramente justa, em que ninguém mostra inteiramente sua face. O charlatanismo intelectual é um aspecto mais aparente e ignóbil disso” (p. 308). Imaginem se Romain Gary estivesse vivo para ver o que tem sido capaz de fazer as redes sociais e seus algoritmos para piorar o quadro já desenhado por ele, em meados de 1970. Olhando para Brasil dos últimos anos pelas lentes de Gary, especialmente desde o golpe sofrido pela Presidente Dilma Rousseff, parece que não evoluímos muito.

Enfim, o livro de Rosa Freire D`Aguiar além de nos fazer passear em uma Paris do final do século XX, se deliciar com suas histórias, aventuras e contextos nas artes, cultura e política, nos traz entrevistas fundamentais para entendermos o nosso tempo e fazer refletir sobre a condição atual de sociedade.