A luta antirracista é contínua e acontece por meio das vozes, vivências e corpos pretos que ocupam espaços e territórios sociais, culturais e políticos no Brasil. Em Maceió, especialmente na rede municipal de ensino, essa luta tem se legitimado por meio dos profissionais de educação, que buscam, com o Letramento Racial Crítico (LRC), a equidade e a integralização de estudantes autodeclarados negros e indígenas no ambiente escolar.

O termo Letramento Racial vem se propagando constantemente nos últimos meses, como uma pauta relevante e um ponto de discussão nas redes sociais, nos púlpitos políticos, eventos e assembleias universitárias, como uma forma de ensinar e repreender casos de racismo ou injúria racial no país. Porém, O Letramento Racial Crítico (LRC) já é utilizado há anos. Em 2003, foi sancionada a Lei 10.639 que incluiu a história e cultura afro-brasileiras oficialmente nos currículos escolares. No dia 9 de janeiro de 2023, a lei completou 20 anos.

Segundo Luciano Amorim, pedagogo e coordenador da Coordenação-geral Técnica de Ações Educacionais de Direitos Humanos e Cidadania, da Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Maceió, não há como pensar o letramento na perspectiva apenas escolar, mas também deve-se pensar de forma ampla. Para o servidor, o LRC é uma postura que deve ser adotada cotidianamente na sociedade.

"Ele também é uma metodologia que ancora em alguns eixos sociais, que são adotados, inclusive, pela política nacional e internacional de direitos humanos: tem todo um caminho a percorrer, pois é um método que passa por um olhar interseccional, a partir da análise da realidade social. O LRC vai além da alfabetização, ele preza pela relação com a ancestralidade, com a identidade individual e coletiva, propõe rupturas. O Letramento Racial versa sobre quem a gente é", explicou Luciano.

De acordo com os dados da Coordenação-técnica de Informação e Estatística Educacional da Semed, através do Sistema para Administração e Controle Escolar (SISLAME), no Município, 772 estudantes se autodeclaram pretos, 15.178 se identificam como pardos, 36.300 alunos têm raça/cor não declarada; há também 2.006 estudantes que se autodeclaram brancos, 117 amarelos e quatro indígenas.

"A relação de identidade e pertencimento para as crianças se dá no Letramento Racial dessa forma. Então não tem com a gente pensar em um espaço da ótica da branquitude, mas sim de acordo com a realidade, que em Maceió é negra, indígena e periférica", disse o pedagogo, que também complementou que ter nas escolas brinquedos, dinâmicas, jogos ou atividades que saiam da ótima europeia e branca é um primeiro passo para conquistar a diversidade nos espaços.

"Na educação infantil, especificamente, a gente tem uma cultura geral de achar que as crianças de 0 a 6 anos de idade não têm o letramento do mundo por questões alfabéticas que estão inseridas. Mas, elas já têm um letramento dentro da realidade que elas estão inseridas". E conclui dizendo que o acolhimento de estudantes pretos e a inserção de objetos diversos de aprendizagem na escola possibilitam a autoidentificação.

"É necessário que as escolas adotem essa postura, que tenham uma literatura negra, brinquedos estruturados e que não só sejam ancorados na branquitude. Isso, de alguma forma, faz com que a criança através do toque, olhar, desejos e interesses em espaços de referência, se identifique", concluiu.

 

Reconstruindo histórias

A assistente social Leila Costa, da Escola Municipal Higino Belo, localizada no Farol, incentiva há 18 anos a valorização de temáticas étnico-raciais através de intervenções durante as aulas regulares na unidade escolar.

Ela contou que criou o projeto "Iluminar", que foi inspirado na música "Iluminado", do cantor e compositor alagoano Djavan, com o intuito principal de tentar incluir mais diversidade na literatura infantil que é distribuída dentro da escola e debater, de forma lúdica, vários assuntos: o bullying, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o combate ao abuso sexual infantil, e a diversidade étnico-racial.

"Houve pesquisas de livros e pessoalmente fiz as datas, calendário, preparei, alinhei também com os professores. A gente trabalhou os livros infantis, fui contando essas histórias em roda, sempre em roda e discutindo. E muitas vezes tive que interromper porque tinha outras coisas que surgiam na hora e a gente não podia perder a oportunidade. Eles iam reproduzindo o que eles entendiam através de cartazes, depoimentos, culminâncias", explicou a servidora.

Leila acredita que a escuta é muito necessária quando se estar realizando trabalhos com as crianças, porque da boca delas podem sair inúmeras histórias. Durante uma dessas intervenções, por exemplo, uma criança preta comentou com Leila que não era preta, pois achava que apenas o tom claro do antebraço definia a sua identidade. Em outra ocasião, a assistente social se deparou com um estudante preto cantando uma música que é bastante entoada na capoeira.

"Eu abraço essa causa e faço questão de todos os anos a gente trabalhar essas questões, não só em novembro, mas tentar colocar no plano de ensino dos professores alguns textos e atividades que deem ênfase a essa questão da diversidade racial, não só do negro, mas também do indígena".

Ela relatou que ao fazer uma pesquisa na escola sobre a literatura distribuída na escola encontrou, em sua maioria, obras que evidenciam personagens europeus e brancos. "Contos infantis, a Cinderela, Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, entre outros. Não que não seja legal, é sim, mas precisa ter essa diversidade. A gente precisa tentar reconstruir essa literatura", enfatizou Leila, que também comentou que utiliza livros para contação de histórias como "Meu Cabelo Não é para Seu Governo", "O Garoto Marrom", "O Cabelo de Lelê", obras que estimulam a autoafirmação e o empoderamento.

Ainda segundo Leila Costa, 70% das crianças da Escola Higino Belo são negras e vivem em comunidades periféricas em vulnerabilidade. "É uma vulnerabilidade muito grande e a gente precisa que a escola trabalhe a identidade, a inclusão da criança. A escola precisa ser construtora de conhecimento sócio e cultural. É uma questão muito profunda e a gente precisa estar muito atento. É o nosso trabalho e obrigação enquanto educador".

Para ela, é de grande valia inserir nas atividades escolares ações que desconstroem imagens, que tenham possibilidades de reafirmar identidades e referências positivas. "A escola precisa ser dinâmica e acolhedora. E que ela desconstrua tudo que é enraizado na gente. A gente sabe que é difícil, mas é possível", destacou a assistente social.

 

Brincadeiras que mudam realidades

Isa Cajé, professora há quatro anos da rede municipal e coordenadora pedagógica do CMEI Silvânio Barbosa, localizado no Benedito Bentes, é outra servidora que tem o Letramento Racial Crítico como força motriz para mudar realidades. Ela contou que já se questionava sobre algumas questões referentes à temática afro-brasileira nas escolas e se mobilizava em pesquisas, estudos e vivências.

“Uma questão sempre me mobilizou: a construção e o fortalecimento da identidade étnico-racial das crianças pequenas e bem pequenas. Como esse processo acontece mediado pelas influências externas na reprodução interpretativa da cultura das infâncias. Que referenciais as crianças carregam de si e do outro? E quem é esse outro? Pensamos em como podemos atuar combatendo o racismo nessa criação de referenciais positivos, e como a gente resgata a história de uma forma palpável”, relatou.

A professora realiza diversas atividades que fazem com que as crianças do maternal 2B, do CMEI, se empoderem e se identifiquem com o que elas são, sem disfarces ou máscaras. Confecção de bonecas e bonecos pretos, leitura de livros com temática afro e indígena, como “As Tranças de Bintou”, “Meu Crespo é de Rainha” e o “Salão de Jaqueline”, construção de autorretratos com gizes de cera em variados tons de pele, gramaturas de papel e texturas diferentes, espelhos, fotografias das crianças do grupo, confecção de turbantes, apresentações de Coco de Roda, Capoeira, Guerreiro, são algumas das ações e brincadeiras aplicadas na unidade.

“É tão importante levar essas questões que após ter acesso a alguns livros, que ficam no contexto de referência, uma criança chamada Clara tentou reproduzir em seu cabelo os birotes [penteados afro femininos em forma de coquinhos]. Outra criança chamada Joaquim, de dois anos, reproduziu uma dança ao ritmo do Coco de Roda. Essas ações acontecem todos os dias".

"O professor não precisa esperar novembro chegar para abordar com as crianças em suas salas a influência que a África tem em nós ou a pluralidade de África. Os países, os povos, as línguas. Não devemos esperar o mês de novembro para destacar toda a influência negra no Brasil”, destacou a professora.

Isa também chama a atenção à valorização dessas crianças e estudantes nas unidades escolares e a importância da boa percepção social do professor. “A criança usa muito o corpo para se movimentar. Então se estende. Quando nós pensamos no que compõe a nossa sala, as bonecas e bonecos, existe uma pluralidade étnico-racial, nos cartazes, nos fantoches, nos livros, existe essa pluralidade, não só negra, mas também indígena. Desfiles para valorizar as características de cada criança é importantíssimo, como também valorizá-las todos os dias”.

“Todos devemos refletir também se estamos atentos em quais crianças damos carinho, colo, chamego: se é para todas ou não, se não, vamos avaliar esse processo. É importante que estejamos atentos nas relações entre as crianças e seus pares, entre as crianças e os adultos, tendo sempre o cuidado para não tornar esses referenciais exóticos ou estereotipados. É preciso estudo e trazer para sala de aula referenciais históricos”, enfatizou a educadora.

 

Projeto Ubuntu

Um dos projetos da Educação que tem se destacado na rede municipal é o “Ubuntu”, que tem como objetivo levar para as escolas estratégias que incorporam a literatura e o uso de materiais didáticos nas abordagens sobre a diversidade racial. O lançamento do projeto aconteceu em agosto deste ano, durante a programação da 10ª Bienal Internacional do Livro.