A desapropriação é um processo complexo e delicado que envolve a aquisição compulsória de propriedade pelo Estado para fins de utilidade pública. Ao passar por esse processo, tanto o governo quanto os proprietários afetados devem observar diversos cuidados para garantir que o procedimento seja justo, legal e transparente.
No caso do objetivo da desapropriação for um hospital, o interesse público está relacionado à prestação de serviços de saúde à comunidade. Podendo ser a manutenção deste serviço quando há grave risco de sua interrupção ou a ampliação do atendimento da população pelo investimento de recursos públicos.
A aquisição de hospitais através de desapropriação tem se intensificado no Brasil a partir de 2019. Com base em pesquisa abrangente em matérias veiculadas na imprensa é possível identificar que a maioria dos casos foi para ampliar a oferta de leitos durante a pandemia ou quando a unidade hospitalar passava por situação financeira ou estrutural deficitária que apontava para risco de interrupção ou diminuição dos serviços à população. Um fato comum a todos os processos de desapropriação foi que o hospital já atendia a população pelo SUS e a grande maioria era filantrópico.
Um outro fator comum identificado na pesquisa é que o governo municipal ou estadual tentou alternativas como aluguel das instalações, contratualização de serviços, intervenção na gestão ou mesmo negociação direta de forma pública para aquisição. Sempre o processo que culminou com a desapropriação foi longo, superior a um ano. Assim, o ente público demonstrou que esgotou todas as alternativas razoáveis antes de recorrer à desapropriação na busca da melhor solução para disponibilizar um serviço mais adequado a demanda da população.
Destaca-se que parte dos processos foram parar no judiciário ou questionando-se o valor ofertado pelo poder público ou pela falta de transparência e de cumprimento dos requisitos legais para se preservar a possibilidade de se auditar e verificar o cumprimento de todos os preceitos legais. Pode-se citar, como exemplo, a suspensão da desapropriação em 2023 do Hospital São João Batista - em Diamantino no Mato Grosso, pois o procedimento de desapropriação possuía inconsistências como a falta de um inventário preciso elencando todos os equipamentos e móveis abrangidos.
O Caso do Hospital do Coração em Maceió é absolutamente ‘sui generis’, pois não era um hospital filantrópico, não atendia o SUS, não estava em dificuldade financeira e o tramite da desapropriação foi muito mais rápido que qualquer outro identificado na pesquisa (menos de um mês entre o decreto de desapropriação e o pagamento). A princípio, não foi identificado inventário dos equipamentos, móveis e utensílios e, até hoje, não houve qualquer questionamento dos desapropriados quanto o valor pago e nem foi deixado valores disponíveis para quitação de possíveis passivos.
Outro ponto bastante inusitado sobre o Caso do Hospital do Coração de Maceió foi que o valor pago está aparentemente bastante superior ao que foi pago nos demais hospitais adquiridos pela mesma sistemática. Confere aí um resumo de alguns dos hospitais identificados na pesquisa:
a) Hospital Leonardo da Vinci, Fortaleza/Ceara, com 230 leitos, 30 deles de Terapia Intensiva (UTI) e valor da desapropriação em 2021 de R$ 40 milhões;
b) Hospital Samaritano, Belém/Para, com 170 leitos, 20 dos quais de Terapia Intensiva (UTI), valor da desapropriação em 2015 de R$ 13,3 milhões;
c) Hospital Espanhol, Salvador/Bahia, com 246 leitos, sendo 70 de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), valor da desapropriação em 2019 de R$ 80 milhões, sendo esse valor atualizado em 2021 para R$ 118 milhões;
d) Hospital Arcanjo São Miguel, Gramado/Rio Grande do Sul, com 100 leitos, dentre eles 10 leitos de Terapia Intensiva (UTI), valor da desapropriação em 2023 de R$ 30 milhões;
e) Hospital Dr. Estevam, Sobral/Ceará, com 110 leitos, sendo 10 de UTI, valor da desapropriação em 2022 de R$ 10 milhões.
É claro que as condições locais e necessidade de investimentos complementares em cada um dos casos influenciam no resultado de preço pago. Entretanto, não há dúvida que toda a polêmica política em torno desta operação pela prefeitura de Maceió surgiu pela falta de transparência de todo o processo, porque o procedimento não seguiu os princípios utilizados no instituto da desapropriação e porque o preço pago por qualquer técnica de avaliação de preços surpreenderia até mesmo a Nelson Rodrigues se estivesse vivo. Pode ser que o sobrenatural de Almeida possa explicar quem sabe.
O caso é tão esquisito que Prefeitura até hoje não deu acesso a vereadores que tentaram visitar as instalações do Hospital, nem mesmo ordem judicial foi capaz de permitir, até o momento, o acesso. Este fato, que aparentemente é isolado, chama atenção se for analisado sob a ótica de que não há inventário conhecido do que foi desapropriado. Bom, pelo menos não foi divulgado.
O risco é evidente e em casos em que isso ocorreu o processo desapropriação foi suspenso judicialmente. Enquanto o debate fica nas redes sociais tentando-se levar um assunto sério como esse para um mero fato político, acredito que há um risco, com diria um impoluto ex-ministro do meio ambiente, de se passar uma boiada.
George Santoro