Flávio VM Costa, editor-chefe do Intercept Brasil escreve e o blog, com um intenso, profundo, absurdado  sentimento de indignação republica:

As duas mortes de Mãe Bernadete

Em vida, ninguém escutou seus pedidos de proteção. E agora?

"Estou com o corpo da minha avó aqui no sofá. Minha avó foi executada. Eles levaram o meu celular, o celular dela. E eu não tive como fazer muita coisa".

As frases acima foram ditas por um dos netos da ialorixá Maria Bernadete Pacífico, conhecida como Mãe Bernadete. Ela era líder da comunidade quilombola Pitanga dos Palmares, localizada na região metropolitana de Salvador. Na noite de quinta-feira, foi assassinada aos 72 anos de idade, com 12 tiros, dentro de seu próprio terreiro.

O neto que viu a avó ser assassinada não poderia mesmo fazer alguma coisa diante de homens armados. É um inocente, vítima e testemunha de uma violência.

Mas as autoridades brasileiras foram avisadas e, como sempre, nada fizeram. Explico abaixo.

Liderança da Conaq, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, Mãe Bernadete fez tudo que estava a seu alcance. Defendeu a integridade territorial do quilombo que abriga 300 famílias na região metropolitana de Salvador, cobrou justiça pelo assassinato de seu filho ocorrido em 2017, honrou seus ancestrais e avisou que era um alvo enfrentar a especulação imobiliária.

Duas semanas antes de ser executada, ela explicou à presidente do STF, ministra Rosa Weber, a sensação angustiante de viver sitiada. 

"Recentemente, perdi um outro amigo e amiga de quilombo também. É o que nós recebemos: ameaças. Principalmente, de fazendeiros e de pessoas da região. É o que nós recebemos. Hoje vivo assim: não posso sair que tô sendo revistada, minha casa é toda cercada de câmera, me sinto até mal com um negócio desse".

Não se sabe o que Rosa Weber e outras autoridades presentes ao encontro fizeram depois que escutaram o relato, mas a presidente do Supremo emitiu uma nota lamentando a morte de Mãe Bernadete.

Em maio, Mãe Bernadete foi desligada do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, PPDDH, de acordo com informação da ONG Justiça Global. A alegação foi falta de recursos.

O programa é gerido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Sílvio Almeida, chefe da pasta, emitiu uma nota e enviou uma equipe para a Bahia para acompanhar a investigação do homicídio, mas seria bom que ele explicasse os motivos que levaram Mãe Bernadete a ter perdido essa proteção.

Wellington, filho da ialorixá, disse à TV Bahia que o homicídio era um crime de mando. “Vou deixar um recado para o ministro Flávio Dino e o governador Jerônimo Rodrigues, que estava com ela até a semana passada: está fácil de resolver esse crime. Eu peço por favor que se faça justiça. Que não aconteça o que aconteceu com meu irmão. É a chance de elucidar os dois casos", disse.

Não falta competência policial, o que não existe é vontade política.

Indígena e professor universitário, o governador Jerônimo Rodrigues, do PT, que referenda a letalidade da Polícia Militar que mais mata no país, determinou rápida apuração e disse que não podemos permitir que “defensores de direitos humanos sejam vítimas de violência em nosso estado”. 

No lugar de fazer promessas vazias, Jerônimo seria mais útil se cobrasse a Polícia Civil da Bahia por não ter solucionado a morte de Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, mais conhecido como Binho do Quilombo, filho de Bernadete, morto há seis anos. Governador, é preciso coragem.

A sensação ao escrever esse texto é que certos pretos morrem duas vezes no Brasil. Morrem a tiros e morrem outra vez quando seus assassinatos permanecem impunes.

Ser preto no Brasil e escrever sobre violações de direitos humanos é uma luta interminável para vencer dentro da gente o ódio, o desânimo e a paralisia. Porém, pessoas como Mãe Bernadete precisam ser honradas pelo que fizeram em vida e nos cabe lutar por justiça em sua memória. Calados não podemos ficar.

 

Fonte: https://www.intercept.com.br/