*André Gabeh, escreve:

Não existe racismo, mas...

 

É importante que o preto esteja sempre arrumado. Mas, não muito arrumado. O preto bem-vestido precisa manter em si o "perfume da humildade" pra que sua boa indumentária não o faça chamar muita atenção. Um preto com roupas aquém do que se considera decente é imediatamente enquadrado como subgente, mas um preto elegante demais só pode estar fazendo coisa errada pra poder comprar coisas tão boas. Persevere. É favorável um rigor estético aliado a uma estoica compostura modesta.

O preto deve sempre ter seus documentos consigo. Deve também carregar as notas fiscais do celular que usa, da bicicleta que anda, do carro que o transporta. Essas notas fiscais tem que ser nominais. Isso não é negociável.

É importante também que seu contrato de aluguel ou escritura do lugar onde mora sempre estejam a mão pra que ele tenha salvaguardado o direito de entrar em seu lar. É importante que a família do proprietário ou do inquilino tenha o mesmo sobrenome dos agregados para que um comprovante de residência seja distribuído para cada um dos moradores. Assim se supõe garantir o direito de ir e vir da própria casa, da família que ali morar.

Pretos e dinheiro em espécie causam terremotos e maremotos mais avassaladores dos que os produzidos por celacantos. Mantenha os bolsos com o mínimo possível. Notas de alto valor são sinônimos de culpa no cartório. 

Não corra, preto. A gente não pode correr. Ande devagar sem muita firmeza, mas com quase nenhuma malemolência. Mas não corra. Nunca. A gente não pode esquecer disso. 

É importante que o preto sorria. Um sorriso suave em que a boca se alargue em um arco sutil e o olhar transpareça uma bondade que remeta a iconografia euro cristã. O treino do olhar beatífico deve ser uma busca de todo preto.  Um olhar muito indiferente incomodará, um olhar muito alerta criará medo. Um sorriso muito escancarado poderá ser considerado ameaça, uma expressão muito séria espalhará desconforto.

A gente não pode andar em grupo.  Não façam isso, por favor. Tudo menos andar em grupo, mas, paradoxo dos paradoxos, andar sozinho também é impensável e em dupla é suicídio. 

O preto deve usar referências cristãs pentecostais: roupas estampadas com versículos, bolsas bordadas com o nome de Jesus, bonés com a palavra FÉ estilizada em um crucifixo. Bíblias debaixo do braço são muito bem-vindas desde que tenham capas de cores românticas para não serem confundidas com armas. Esses códigos ajudarão na sensibilização dos fetiches religiosos do inconsciente coletivo que precisa nos desassociar da demonização relacionada as tradições afro religiosas. Um preto usando símbolos de religiões de matrizes africanas precisa dominar a arte ninja da invisibilidade. 

O preto precisa plantar trevos de quatro folhas em todo pedaço de terra que encontrar. Ande sempre com essas sementes nos bolsos.

O preto precisa se auto hipnotizar pra a cada vez que alguém falar que racismo é MIMIMI, traduzirmos a expressão por algo aleatório tipo quindim, caminhão ou "eu pago seu salário". 

O preto precisa ser invisível. Precisa ser invisível demais.  Temos que ser muito discretos, sutis e mansos. Muito mansos.

E mesmo assim seremos confundidos com bandidos, confundidos com assassinos, confundidos com estupradores, confundidos com espíritos malignos, confundidos com vultos demoníacos, confundidos com o saci, confundidos com a mula sem cabeça, confundidos com estrela da manhã...

Confundidos

E confundidos

E confundidos

E confundidos...

E finalmente, mesmo com tudo isso, nos assassinarão.

Simples assim.

 

*André Gabeh é cantor, compositor, desenhista, professor de canto e escritor.