A relação entre Executivo e Legislativo em uma democracia deveria ocorrer de forma republicana, com a formação de apoio parlamentar ao governo em torno de programas e políticas públicas. Contudo, isso ocorreu em poucos momentos de nossa democracia e, infelizmente, nunca estivemos numa situação tão delicada. Exemplo melhor dessa ruína é a ameaça causada pelo uso das chamadas emendas orçamentárias de relator.
O Brasil está em processo de adesão a OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Nos seus países membros, a discussão e aprovação do orçamento é objeto de envolvimento popular, não raro as sessões de discussão são transmitidas pelas mídias sociais e até pela televisão. Até porque nada é mais importante do que a discussão de onde virão os recursos e como se deve dar o gasto público.
Entretanto, os parlamentares no Brasil, apesar terem à sua disposição emendas impositivas, que são de execução obrigatória e transparentes, ávidos por poder obter mais recursos do orçamento, desenvolveram um mecanismo efetivo de barganha política: as emendas de relator. Estas emendas possuem valor bastante elevado e destinado a órgão, em tese, com possibilidade de fatiar os recursos de forma a disfarçar o jogo político ou mesmo facilitar o uso não programado destes recursos em alguns casos.
O historiador Adam Tooze na Obra “O Preço da Destruição” aponta a existência de um orçamento secreto na Alemanha nazista para compra de apoio político e dos militares: “O orçamento Secreto do reich, para 1939, atribuía um total de 20,86 bilhões de reichsmarks a Wehrmacht.”
De forma semelhante funcionam as emendas de relator. Na aparência ocorrem decisões técnicas destinando recursos para fundos de saúde, Codesvasf e Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação - FNDE. Entretanto, infelizmente, as escolhas não são técnicas e puramente políticas e casuísticas na sua maioria. A imprensa semanalmente vem identificando diversos casos de mau uso de recursos dessas emendas. Enquanto escrevo este artigo, reportagem do programa Fantástico da rede Globo apresenta matéria ilustrando um caso.
O novo mecanismo de cooptação política talvez seja pior que os anteriores, uma vez que antes tanto as emendas parlamentares quanto as nomeações tinham seus patrocinadores conhecidos de forma transparente. No novo mecanismo, os parlamentares favorecidos e o quanto destinado a cada um ficam ocultos da sociedade. Não há registros prévios ao pagamento das despesas e, mesmo quando empenhadas e pagas, é extremamente difícil sua identificação.
Aliás, nos últimos anos acelerou o processo de captura do orçamento pelo Legislativo no âmbito federal. O desvirtuamento do uso de Emendas Orçamentárias no Brasil é absolutamente suis generis, pois este instrumento existe em praticamente todos os países do mundo, porém aqui os parlamentares federais tem alterado o orçamento a nível micro, indo no detalhe da despesa pública. São mais de R$ 40 bilhões de orçamento secreto nos últimos anos. Na sua grande maioria, verbas têm sido destinadas sem qualquer critério e objetivo técnico.
Na prática percebe-se o uso destas verbas para cooptação de apoio político. O maior exemplo disso é que no atual governo foram aprovadas 26 emendas à Constituição brasileira, sendo que quase a sua totalidade foi para possibilitar o aumento de despesas. Ou seja, o mecanismo das emendas secretas se retroalimenta, tornando o debate democrático praticamente nulo no parlamento federal. Dessa forma, fica fora de rota discutir reformas que modernizem o país, pois o foco é apenas a manutenção do poder pela distribuição de recursos públicos. Não é à toa toda a resistência em enfrentar essa situação.
Até porque temos parlamentares da situação e da oposição envolvidos neste tipo de uso dos recursos públicos. O orçamento é o espelho da vida política de uma sociedade, uma vez que registra e revela, em sua estrutura de gastos e receitas, as classes que arcarão com o maior ou menor ônus da tributação, assim como as que mais se beneficiam com a destinação destes recursos. Assim a democracia vai se representando no consenso dos eleitos que representam naquele momento a vontade do povo por políticas, ideias e ações.
Precisamos restabelecer as convergências políticas alicerçadas em programas e projetos para o país preservando a Rés Pública. Para isso, é necessário restabelecer a total e absoluta transparência orçamentária com objetivos e resultados que possam ser aferidos por todos. Temos assim, a necessidade de recomeçar uma nova trajetória na construção do orçamento e da representatividade parlamentar na sua concepção. É preciso cobrar responsabilidade a eles por suas escolhas que não podem ficar apenas com o bônus e o ônus ao Executivo. É necessário o comprometimento consensado entre a maioria parlamentar e os demais poderes.
George Santoro
Luiz Eduardo Santoro