Era início do ano de 2021, mais exatamente o mês de fevereiro, e o Brasil se aproximava do período mais letal da pandemia da Covid-19, que alcançou o recorde de óbitos em março, com uma média diária de 3,4 mil.
Naquele mês de fevereiro, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), já tinha pleno conhecimento de que existiam 16 vacinas em desenvolvimento no Brasil por instituições de pesquisa importantes. Desse montante, 6 estavam em estágio avançado de desenvolvimento. Entretanto, esse esforço nacional necessitava de um empenho maior na “cota de combustível”, ou seja, dependia para avançar de mais recursos financeiros para o fomento científico.
Reconhecendo a importância que o país poderia alcançar na autonomia científica e avanço tecnológico, o MCTI solicitou ao Ministério da Economia um crédito suplementar de R$ 390 milhões, justificando que o apoio ao desenvolvimento de uma vacina nacional seria fundamental na busca da soberania nacional do país na sua produção e distribuição. O argumento utilizado pelo MCTI reforçava que o Brasil não poderia ficar “demasiadamente dependente da importação de produtos para a saúde”, assim como ficou evidente quando enfrentamos a escassez de testes diagnósticos e ventiladores no início e durante a fase mais grave da pandemia.
A imediata e objetiva resposta à demanda do MCTI foi uma clara demonstração da miudeza com que as autoridades econômicas no país tratam a área de ciência e tecnologia no Brasil. Nela, o Ministério da Economia afirmou que “a demanda por crédito extraordinário para pesquisa em andamento, quando havia vacinas aprovadas e em uso em alguns países, não preenchia os requisitos constitucionais demandados para uma proposição de uma medida provisória” com a liberação dos recursos extraordinários para o fomento à ciência e tecnologia. [1]
Nesse momento vale relembrar a dramática situação que o Brasil passou em 2015 quando crianças nascidas em estados do Nordeste apresentavam problemas de microcefalia. Antes que a situação ganhasse dimensão de calamidade sanitária, uma rede de pesquisadores de instituições de pesquisa de Pernambuco, Paraíba, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais intensificaram as investigações para compreender o fenômeno. Muito rapidamente, identificaram que a causa da microcefalia estava associada a uma infecção provocada pelo Zíka, um vírus transmitido pela picada do mosquito Aedes aegypti, o mesmo que transmite a dengue, a chikungunya, ou seja, as chamadas arboviroses. Mas, o fundamental nesse caso foi a disposição do governo federal em liberar cerca de 70 milhões, através da Casa Civil, para financiar os pesquisadores e os projetos iniciados. Se isso não fosse feito, certame te o número de vítimas não tinha sido estancado na casa das mil crianças nascidas com microcefalia que carregam, infelizmente, sequelas irreversíveis para vida inteira.
No caso da Covid-19, o Brasil poderia ter dado um grande exemplo ao mundo não somente no combate à pandemia, mas também na colaboração internacional da produção de vacinas, caso o governo federal considerasse a importância da ciência brasileira e valorizasse nosso sistema nacional de produção de conhecimento. Não é demais salientar que, por exemplo, a vacina contra o sarampo foi desenvolvida e lançada pela Fiocruz em 1983. No museu da história do CNPq tem uma cápsula com líquido da vacina simbolizando esse feito para a ciência brasileira e seu fomento.
Mas, nem mesmo a maior e mais grave pandemia que o mundo enfrentou depois da gripe espanhola conseguiu convencer o atual presidente da república e vários dos seus assessores da importância da ciência e conhecimento. Não foi por escassez de múltiplas evidências e inúmeros exemplos de posturas políticas. Trata-se de uma posição eminentemente ideológica que está levando o Brasil para um patamar de desestruturação de várias instituições e políticas públicas onde o saber, o conhecimento científico e o desenvolvimento tecnológico atuam direta e indiretamente. O caso das políticas de monitoramento e preservação ambiental é um dos mais flagrantes.
Por motivações ideológicas e forte e inconsequente vontade política, o governo Bolsonaro promove um desmantelamento das instituições de fomento e produção do conhecimento brasileiras, sem ao menos propor ou apontar o que poderia ficar no lugar delas.
Nesse sentido não é exagero afirmar que a grande irresponsabilidade que o atual governo trata o futuro do país, é algo somente comparável aos efeitos destrutivos causados por guerras ou desastres naturais. Enquanto esses provocam efeitos imediatos e custam muitas vidas, a política de sufocar financeiramente o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e seus institutos de pesquisa vinculados, o CNPq, a Finep, a Capes, as Universidades públicas e Institutos Federais, a Embrapa e a Fiocruz, desestrutura todo o sistema, sucateia sua infraestrutura e provoca a migração de pesquisadores para o exterior.
Dois atuais exemplos ilustram esse movimento. O primeiro, a edição da Medida Provisória 1.112/2022, que institui o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País – Renovar, para retirar de circulação toda a frota de veículos de carga com mais de três décadas de uso. A medida é até meritória, se não fosse a origem dos recursos que serão destinados ao tratamento da sucata desses veículos. O financiamento virá do desvio dos recursos dos contratos da Agência Nacional de Petróleo com as empresas concessionárias que exploram poços de óleo e gás. Desses contratos, 1% se destinam aos projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a área de petróleo e gás.
Entre 2016 e 2022, mais de 2.500 projetos foram contemplados envolvendo cerca de 10 bilhões de reais. Esses projetos estão distribuídos por 94 instituições de ciência e tecnologia espalhadas por quase todos os estados da federação. Desde 1998 que a área de petróleo e gás usufrui dos resultados desses projetos e, sem eles, o Brasil não teria elevado a produção de 866 mil barris/dia, em 1997, para os atuais 3 milhões barris/dia, em 2022. Isso significa que o valor despendido em pesquisa, desenvolvimento e inovação pelas concessionárias, em 22 anos, equivale, atualmente, à produção brasileira de petróleo em 24 dias.
Se já havíamos aprendido, no Brasil, a transformar riqueza em conhecimento, esses investimentos na área de petróleo e gás mostram que aprendemos também a fazer o caminho inverso: transformar conhecimento em riqueza para o país. Se aquela Media Provisória não for derrubada pelo Congresso Nacional, o Brasil perderá uma espetacular rede de financiamento à PD&I com potenciais gigantescos de inserir o país na Nova Era do século XXI, com a economia de baixo carbono na produção de riquezas. Caso isso não aconteça, parte do futuro do país será jogado no ferro velho literalmente!
O segundo exemplo é o bloqueio de recursos orçamentários do sistema de ciência, tecnologia, inovação e ensino superior público federal. Do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), gerido pela Finep e vinculado ao MCTI o Ministério da Economia reteve R$ 2,5 bilhões. O FNDCT é a maior fonte de financiamento de estratégias e programas especiais para a ciência brasileira. Até maio deste ano, do volume de R$ 4,5 bilhões em orçamento para o fomento não reembolsável, R$ 2 bilhões estavam empenhados, sendo que 50% deles liquidados. Portanto, bloquear 55,5% do FNDCT é praticamente encerrar a estratégia de ciência, tecnologia e inovação em 2022 e pendurar vários “fiados” na parede da comunidade científica brasileira e instituições de pesquisa, pois o governo federal já fez várias chamadas e editais públicos que poderão não ser honrados, comprometendo anos e anos de esforço científico e tecnológico.
Nas universidades e institutos federais o bloqueio orçamentário foi da ordem de 14,5%, em cima de um orçamento que diminui continuamente 2016. São nas universidades públicas que se concentra 90% da produção científica brasileira. A estrutura de produção de conhecimento se distribui por mais de 6 mil cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado). As universidades federais concentram 66% desse total. O bloqueio dos recursos do FNDCT afeta, diretamente, essa estrutura de pesquisa e formação de recursos qualificados. Mas, a redução do custeio das universidade e institutos federais atinge o funcionamento de serviços básicos como restaurantes universitários, fornecimento de água, luz, assistência estudantil, vigilância patrimonial etc. Os reitores e reitoras não contam mais com margens de negociação dos contratos. Se o sistema de ensino superior federal já ameaçava fechar as portas esse ano pelos cortes anteriores, agora se tem certeza que não concluíram 2022, isso em um contexto de retorno às atividades presenciais de ensino e pesquisa e atendimento às comunidades locais em inúmeras ações de extensão.
O que levou décadas para a sociedade brasileira construir, está sendo desmontado em poucos meses, com elevada rapidez, impiedosa vontade política e irracional motivação ideológica.