Quando falo no Cícero o verbo engole o presente e se assenta no passado.

O Cícero foi morto muito jovem, entre os 18 e 19 anos, era um menino preto, sem os dentes da frente.

 Quando ria o vento assoviava uma cantiga desafinada. Era a cantiga da morte, que desde a infância rondava os passos do menino.

Filho de uma família desmantelada pela miséria que afogava sonhos , o menino para ter uns trocados, vendia frutas e verduras, em um carrinho de mão, no Mercado da Produção.

De tanto ser taxado de bandido, sem ainda ser (preto, retinto, maltrapilho e pobre) Cícero trilhou o caminho para onde o olhar da sociedade o empurrava. Assumiu a chefia de uma gangue de meninos que surrupiavam o alheio nos arredores da região. 

Um dia, em compras no Mercado, fui cercada pela gangue do Cícero e , ele, imediatamente , ao me reconhecer gritou :- Deixe ela em paz, é minha professora! 

Ainda hoje quando relato isso fico emocionada.

 O Cícero, o menino sem os dentes da frente , preservou na alma a lealdade da partilha do  afeto  construído.

Quando faz tempo de banzo, uma melancolia preta, dessa naturalização, banalização de mortes, que nos mostra nas telas de tv, lembro dele. 

Foi meu aluno. Morto muito jovem

Salve, Cícero!