‘’Outra característica da jornada: — o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: — o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro. Um Didi, lá fora, observou uma calma, uma polidez, um equilíbrio que fariam morrer de inveja o major Anthony Eden. Amigos, na Suécia quem levou pontapé, do pescoço para cima, fomos nós. E, ainda por cima, roubaram a gente, bifaram os nossos gols, a nossa camisa. Mas tudo inútil, porque o Brasil apresentou o maior escrete do universo, segundo os mais exigentes críticos do mundo’’

(Nelson Rodrigues – Manchete Esportiva, Edição da Epopeia Brasileira, Edição Especial, 5/7/1958 – Retirado da coletânea A Pátria de Chuteiras)

A linguagem é um cupido. Sim. A linguagem só funciona, só realiza seu destino teleológico quando enche de amor, paixão e ânimo o coração das massas. E assim nasceu o rádio, o primeiro cupido, o primeiro arqueiro que, caprichosamente, disparava com ardor e entusiasmo as flechas da mensagem enamorada. O rádio é o pai da comunicação de massas e, o futebol, como paixão Nacional é filho do rádio. Além de fruto do rádio, o futebol como fenômeno popular, também é uma linguagem. O outro cupido do futebol é a crônica esportiva. Sim, amigo leitor! O futebol é pura linguagem, mensagem…

O futebol é a linguagem do corpo, o idioma dos gestos, a batuta que orienta a cinesia, o movimento. O drible. Vamos usar o drible como exemplo. O drible é a linguagem da ilusão, da persuasão, da produção do engano pelo encantamento – o verdadeiro Górgias é o drible. E o que é o drible narrado, sem imagens, apenas descrito pela voz do rádio? É um exercício de composição mental, de imaginação do ouvinte e, portanto, o rádio produz nas consciências um grande teatro imaginário. Sem as imagens, o torcedor, veste os figurinos da imaginação.

E vamos voltar ao drible, amigo leitor? O drible, a finta, a miragem do gesto é pura linguagem. Os japoneses, com razão, orgulham-se da criação do Judô. E eles têm todos os motivos. O Judô, mesmo os leigos como eu sabem, usa a força do oponente para derrubá-lo. Fantástico. O Futebol Brasileiro, contudo, inventou a finta, o drible. O drible possui o poder de derrubar o adversário, mas, diferente da arte marcial japonesa, o oponente tomba sem ser tocado. Despenca no chão como uma vítima voluntária, como um devoto das ilusões e dos feitiços.

E o craque Didi? Didi não era exatamente um driblador. Nosso craque, todavia, notabilizou-se pela elegância, pela postura augusta, majestosa. Didi jogava como meio campo, era o cérebro de qualquer time, a cabeça pensante e, além de tudo, esbanjava a nobre elegância dos seres raros. Além de tudo, amigos, vale menção ao passe apolíneo, ao domínio de bola e, notadamente, o chute com efeito – a famosa folha seca. O arremate que faz a bola desenhar no espaço uma trajetória cheia de beleza e encantamento melódico.

O Senhor do Futebol jogou em grandes clubes do futebol Mundial. Pelo Fluminense seu maior título foi o de Campeão Mundial de Clubes, pelo Botafogo venceu o importante Rio x São Paulo e, pelo Real Madrid, foi campeão da Copa dos Campeões da Europa, a atual Liga dos Campeões. Pela Seleção Brasileira, Didi conquistou diversos títulos e, entre os mais importantes, o Bicampeonato Mundial em 1958 e 1962. Nosso Príncipe Etíope, de tão brasileiro, encarnava a virtude do Gênio Pátrio, as qualidades morais e intelectuais da brasilidade que nos atravessa. E eu gostaria de falar apenas de um predicado do Craque – da calma! Sim, amigos! Da calma!

A calma e o futebol de Didi foram decisivos na conquista da primeira Copa do Mundo pelo Brasil.

Já escrevi em alguma crônica futebolística que toda a antropologia filosófica está redondamente enganada em relação ao ser humano. Depois do nascimento do futebol, toda metafísica não passa de um equívoco quando procura explicar a experiência da humanidade. Aristóteles pensou o ser humano como um ‘’animal político’’. Uma definição razoável. Alguns acham que nosso traço distintivo é a capacidade de produzir, trabalhar. Outros esforçados intelectuais interpretam o ser humano como um animal capaz do simbólico, da criação de sentido e até mesmo do lúdico – há de fato um Homo Ludens em nós? Eu digo, amigos, que somos um homo torcendis.

O que é o homo torcendis? O ser humano é o único animal capaz de torcer! Exatamente! Uma antiga lenda conta que a palavra ‘’torcedor’’ surgiu no estádio do Fluminense no começo do século passado. O Futebol, todavia, é um Deus diferente – criou primeiro a torcedora. Sim. Diz a antiga fábula que, nas Sagradas Arquibancadas de Laranjeiras, jovens moças torciam suas luvas em sinal de aflição, de amor, de raiva, de paixão – de todas as emoções que uma partida é capaz de provocar. Repito, amigos: somos o único animal capaz de torcer e, de tal modo, justifico o neologismo criado para uma língua morta: – cada um de nós é um homo torcendis!

E o que torna nosso Príncipe diferente do resto da humanidade? Didi era o mestre da calma, da paz interior, da imperturbabilidade – exatamente o inverso do torcedor, da humanidade geral. Nosso Craque era a encarnação da calma, a própria ataraxia em carne e ossos. Didi foi um craque estoico, epicurista. Melhor dizendo, amigo leitor: Epicuro é um ‘’nervosinho’’ perto de Didi. E a paciência sublime, a serenidade infinita, alcançou seu estado apoteótico na final da Copa do Mundo de 1958. O rádio, o primeiro dos cupidos, transbordava de palavras tristes e desesperadoras: aos quatro minutos da primeira etapa, Nils Liedholm abriu o placar e, o histórico Estádio de Råsunda, explodiu uma alegria até então inédita para os nórdicos!

Nils Liedholm, por um instante, foi mais importante que Gunnar Myrdal para a história da Suécia. E então dos decibéis da euforia sueca nasce a calma brasileira. Vestidos de azul, pois a cor amarela era privilégio dos donos da casa, cada Craque do Escrete entrou coberto com o manto de Nossa Senhora Aparecida. E um deles, o nosso Príncipe Didi, foi o encarregado do milagre. O Gênio, contrastando com a catarse geral, caminhou calmamente até o fundo das redes. O gol poderia abalar a confiança e o moral do Selecionado Brasileiro. O gesto do Craque mudou a história. Enquanto a excitação nórdica arrebentava por toda a Suécia, Didi tomou a bola para si e fez uma calma palestra no lento caminho até o meio-campo.

Augusto, dono das mais altas virtudes, o Senhor do Futebol fez apelo ao útero de toda a sabedoria – a memória. Suas palavras, sua mensagem, seu discurso reanimou o coração do conjunto Brasileiro. Didi recordou que o Botafogo, seu clube no contexto da Copa de 58, já havia jogado e goleado a seleção sueca. De tal modo, como um epicurista, como o mais epicurista dos epicuristas, como encarnação da ataraxia, a mensagem de Didi foi um cupido. A equipe Brasileira reagiu prontamente. Logo aos nove minutos da primeira etapa, Garrincha recebe de Didi, dribla para iludir a defesa adversária e cruza, a bola passa por Pelé e Vavá arremata para as redes – 1 a 1! O resto da história, o leitor já conhece…

A virada, todavia, nasceu das virtudes morais de Didi. A encarnação da calma, com a mensagem correta, no momento oportuno abrandou e orientou os companheiros. O gesto emblemático do craque serve de metáfora para o Brasil atual. Um país tenso, dividido, exasperado, polarizado, nervoso e desorientado precisa do seu Didi, da sua encarnação da calma e da serenidade. O país dos ânimos exaltados, dos ressentimentos e das lastimáveis disputas erísticas e aporéticas, precisa de um movimento político para a virada que, obviamente, será liderado por alguém que encarne as qualidades que o contexto exige – notadamente a calma do Senhor do Futebol! A virada, a retomada brasileira precisa de um Didi…