O poeta amazonense Thiago de Mello, perseguido pelo governo militar, escreveu um poema dedicado ao escritor Carlos Heitor Cony (um dos primeiros intelectuais brasileiros a se colocar frontalmente contra o golpe do regime militar), intitulado “Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)”. O referido poema foi declamado na abertura dos trabalhos da nossa Assembleia Constituinte (1987), acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Brasília. No trecho a seguir ele apresenta conceitos fundamentais para o uso dos recursos públicos:
(...) “Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.” (...)
O momento de sua declamação foi bastante oportuno, pois, como muito bem define a cátedra do professor Heleno Torres: no estado constitucional moderno o orçamento público tem grande relevância, pois é um importante instrumento para o controle legislativo sobre a Administração.
(...) “Com o orçamento público, os povos conquistaram o direito de dominar as finanças do Estado e, ao mesmo tempo, o de controlar as escolhas democráticas, ante às preferências reveladas no processo eleitoral, no que concerne à realização contínua dos fins do Estado, da efetividade dos direitos e da apuração do cumprimento dos programas dos governantes eleitos pelo voto popular.” (...) (Torres, 2014[i]).
Assim deve-se recordar do embrião do orçamento público. No Reino Unido, em 1217, o rei (João Sem-Terra) outorgou a famosa (Carta Magna), que estabeleceu controle a atuação do soberano. Entretanto, somente a partir de 1822 foi formalmente redigido o primeiro orçamento público na Inglaterra e o Executivo passou a prestar contas ao Legislativo. O costume britânico nos impõe a interessante lição: quando o Parlamento propuser aumento das despesas previstas no projeto de orçamento, implicará em perda de confiança no Gabinete, tornando-se imperativa a formação de um novo Governo. Fica claro que a peça orçamentária é tratada com todo respeito a convivência democrática e que ele realmente permita o desenvolvimento de ações que possibilitem a prestação de serviço público, a população e a realização de investimentos de forma coordenada e planejada.
Isso significa que as escolhas em matéria de gastos públicos não constituem um tema integralmente reservado à deliberação política, mas também de obediência as normas jurídicas constitucionais e a boa técnica econômica. Dessa forma, busca-se a garantia da ordem e do bem-estar social. O Estado precisa alocar adequadamente seus recursos financeiros para implementar políticas públicas essenciais ao povo, os quais demandam correta e adequada aplicação, sob pena de se verem frustrados os próprios objetivos estatais.
Infelizmente, a maioria da população brasileira, tomou conhecimento recente através da imprensa brasileira do que ela vem chamando de “Orçamento Secreto”. Na verdade, trata-se de uma excrecência legal chamada emenda de relator não prevista na Constituição Federal. Criada inicialmente para resolver erros materiais dos projetos de lei orçamentária por meio da Resolução do Congresso Nacional nº 1/2006, hoje é um gigantesco naco do orçamento federal que não segue os ritos normais de planejamento e governança de gastos públicos.
Os valores das emendas de relator só cresceram ao longo dos últimos anos: em 2017 era de R$ 5,83; já em 2021, o valor das emendas de relator ficaram em R$ 18,52 bilhões. Para piorar, o governo federal por meio de portaria modificou normas para a execução orçamentária das verbas controlados pelo relator do orçamento flexibilizando as exigências para que o Executivo acate a recomendação de destinação final dos recursos que são controlados pelo parlamentar responsável pelo parecer da peça orçamentária.
As despesas são previstas de forma nacional sem especificar seu destino. Só é possível saber para onde foi o recurso cruzando os dados do SIAFE (Sistema responsável pela execução orçamentária e pela contabilidade) com o SICONV (sistema responsável pela execução de convênios). Já quem foi o parlamentar responsável à indicação de cada emenda, somente é acessível por meio da aplicação de Lei de Acesso à informação, que faz com que somente em torno de 30 dias tenha-se alguma resposta.
Desta forma, criou-se um mecanismo nem um pouco transparente de aplicação dos recursos facilitando mecanismos de cooptação política, sem observar os princípios mais basilares da democracia e da nossa constituição, um verdadeiro leviatã.
Ficam assim, maculados direitos fundamentais e a democracia que são pilares fundamentais sobre os quais se deve pautar toda a atividade financeira do Estado criando um perigoso processo de transformação do “Orçamento Programa” para o “Orçamento Cooptação” ferindo de morte o processo democrático brasileiro.
George Santoro
[i][i]Torres HT. Constituição financeira e o federalismo financeiro cooperativo equilibrado brasileiro. Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico, Ano. 2014 Mar;3:25-54.