No ano de 2020 o Brasil comemorou o centenário de um de seus mais ilustres filhos: Celso Monteiro Furtado, ou simplesmente, Celso Furtado. Advogado de formação, historiador por paixão e economista por profissão, Furtado mereceu diversas homenagens ao longo de todo ano passado, realizadas em várias partes do país e do exterior, promovidas por importantes instituições, como universidades, associações sindicais e de classe, organizações não-governamentais etc. Em razão da trágica pandemia da Covid-19, os eventos foram realizados em grande maioria através de webinars, com lançamentos de livros, conferências, palestras, mesas redondas, debates, apresentações culturais, solenidades políticas dentre outros. 

Ainda mais importante foi a produção intelectual e acadêmica que triunfou o centenário de Celso Furtado. Em destaque, três livros escritos a dezenas de mãos: Celso Furtado 100 anos: pensamento e Ação (Editora Contracorrente), Celso Furtado, a esperança militante (EDUEPB) e Celso Furtado: os combates de um economista (Fundação Perseu Abramo/Expressão Popular).[1] Além deles, a revista Cadernos do Desenvolvimento lançou uma edição especial com um dossiê robusto sobre Furtado.[2] 

Todo esse material reúne um conjunto de artigos que aborda a grande maioria das temáticas trabalhadas por Celso Furtado em sua complexa obra intelectual, produzida a partir da década de 1940 até 2004, quando veio a falecer. Foram mais de seis décadas perseguindo e interpretando a formação histórica, social e econômica do país, suas particularidades e as amarrações estruturais que impediam a repetição, nos trópicos, da experiência de desenvolvimento econômico dos países da ponteira da evolução capitalista, entre os séculos XIX e XX. 

Um conjunto desses textos se debruça de maneira biográfica sobre Furtado, explorando seu percurso intelectual e epistemológico, através das suas principais obras, artigos e ensaios. Importante sublinhar que ele próprio escreveu três importantes livros que reuniram grande parte de sua trajetória como intelectual e homem público: A fantasia organizada (Paz e Terra, 1985), A fantasia desfeita (Paz e Terra, 1989) e Os ares do mundo (Paz e Terra, 1991). Em 2014, a viúva de Celso Furtado, a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, organizou essas três obras pela segunda vez e a publicou de maneira definitiva pela editora Companhia das Letras.[3]

Somando-se ao esforço coletivo da produção intelectual e acadêmica em torno do centenário de nascimento de Furtado, Rosa Freire d’Aguiar nos brindou ano passado com um livro espetacular, a partir da organização e seleção de documentos do arquivo pessoal de Furtado. Em Diários Intermitentes ela reuniu textos extraídos dos escritos sublimes que expõem um intelectual que mesmo conversando consigo próprio, prezava pela elegância literária, responsabilidade científica e compromisso político com a sociedade, principalmente a brasileira e latino-americana.[4] 

Ao longo de mais seis décadas de intensa produção intelectual e responsabilidades políticas, algumas assumindo funções nos mais altos cargos da administração nacional brasileira, permitiram a Celso Furtado acumular documentos que vão além dos diários onde expunham reflexões, inquietações, registros históricos, elaboração de pensamentos, teses e debates com sua própria sombra. Sua inserção no mundo das relações pessoais foi rica e diversa e permitiu a Furtado estabelecer um profícuo processo de troca de correspondências, cartas, mensagens etc. com personalidades das mais diferentes áreas de atuação, de intelectuais a lideranças políticas, de ativistas à religiosos, de estudantes à importantes gestores e administradores públicos. 

O que podemos considerar como o quinto volume de uma extensa biografia de Furtado foi lançado agora em 2021, com esse conjunto de missivas com personalidade de várias partes do mundo. Em mais um trabalho irretocável, Rosa Freire d’Aguiar se debruçou em mais de 15 mil correspondências entre recebidas e enviadas por Celso Furtado ao longo de mais de cinco décadas, retirando desse fabuloso arquivo trezentas cartas que registram importantes momentos históricos, alguns marcadamente excepcionais, como as ditaduras militares que se instalavam pela América do Sul, e no Brasil não seria exceção.

Em Correspondência Intelectual, 1949-2004 encontramos o essencial das relações sociais e profissionais de Celso Furtado.[5] Uma demonstração da capacidade que o economista brasileiro teve de manter contato com grandes expoentes, por exemplo, da discussão sobre desenvolvimento econômico nas décadas de 1950-1960 e críticos, como Nicholas Kaldor, Albert O. Hirschman, Wassily Leontieff, Osvaldo Sunkel, André Gunder Frank, Raúl Prebisch, Regino Boti, Richard Kahn, Werner Baer, Ignacy Sachs, Roberto Campos, Eugênio Gudin, Maria da Conceição Tavares, José Serra etc.

Com historiadores, sociólogos, antropólogos filósofos as cartas publicadas evidenciam ricos diálogos com Caio Prado Jr. Hélio Jaguaribe, Luciano Martins, Francisco Iglesias, Francisco Oliveira, Francisco Weffort, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro, Antônio Cândido, Octávio Ianni Bertrand Russel etc. 

Nas lideranças do mundo político figuram entre as correspondências Carlos Lacerda, Fidel Castro, Francisco Julião, Henry A. Kissinger, Jack Lang, Javier Pérez de Cuéllar, José Sarney, Lincoln Gordon, Luís Inácio Lula da Silva, Miguel Arraes, Robert F. Kennedy etc. 

A leitura do livro evidencia como Furtado gozava de um profundo respeito dos seus interlocutores, seja pelo reconhecimento do conjunto de sua obra que vai evoluindo ao longo do tempo, bem como por ter ocupado cargos importantes em centros de decisão estratégicos no Brasil, trazendo consigo para todos eles sua bagagem intelectual, ética e o dever de contribuir, decisivamente, com sua pátria.

Uma segunda característica do livro é o contexto em que grande parte das cartas são trocadas. Elas registram, da perspectiva dos exilados, os impactos psicológico, político, econômico e familiar que as ditaduras militares provocaram nos interlocutores de Celso Furtado e nele próprio. Percebe-se a rede de solidariedade construída para oferecer o suporte mínimo para que os expatriados pudessem suportar a violência que a perseguição política provocou. Então, são textos maculados pelo sofrimento e consequências do rompimento dos laços com a família e a terra natal. Uma grande contribuição para o repensar sobre as consequências de governos autoritários e antidemocráticos na vida das pessoas, em especial, intelectuais e lideranças políticas.

O leque de diálogos apresentados no livro permite também perceber que Celso Furtado era um democrata nato. Essa é uma outra forte característica evidenciada. Ele conseguia dialogar e discutir com personagens dos mais variados espectros políticos e ideológicos. A sua produção científica despertava o respeito e incitava o debate até mesmo de intelectuais que, sabidamente, não compartilhavam de suas ideias. Chama atenção, por exemplo, uma carta de Eugênio Gudin, o papa do liberalismo brasileiro, datada de 7 de agosto de 1952, lhe pedindo para ampliar um estudo, elogiando sua competência e inteligência, além de fazer um convite para que ele integrasse a equipe de estudos e pesquisas da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Ao ler essa carta da perspectiva de hoje, é de lamentar a falta de cordialidade, respeito e consideração no debate entre os economistas brasileiros no contexto político que vivemos.[6]

O elogio feito por Gudin não era gratuito, claro, e a série de cartas que o livro traz com convites para Furtado participar de vários fóruns internacionais e lecionar em grandes centros de estudos e pesquisas, trata-se de uma prova do reconhecimento do tamanho e envergadura da produção intelectual deste paraibano, nascido no alto sertão, no município de Pombal. Esse elemento é outra característica muito presente no vai e vem das correspondências apresentadas no livro. 

Furtado recebera, entre diversos e relevantes convites, dois que se destacam. Um deles partiu do grande filósofo inglês, Bertrand Russel, em carta de março de 1967, para que participasse como membro de um Tribunal para julgar os crimes de guerra praticados pelos EUA ao povo vietnamita. Formava o tribunal pessoas do quilate de Jean-Paul Sartre e Simone Beauvoir. O outro convite foi para lecionar na Universidade de Columbia, EUA, e contribuir como pesquisador visitante do Institute of Latin American Studies, no ano acadêmico de 1964-1965.[7] Na apresentação do livro, Rosa Freire d’Aguiar relaciona vários e importantes outros convites que registram como Furtado era demandado por movimentos intelectuais e políticos, especialmente enquanto residia em Paris. 

Quando Furtado nos deixou, em novembro de 2004, a economia brasileira já “surfava” plenamente sob a hegemonia da cultura rentista de acumulação de riqueza. Isso o incomodava profundamente. O rentismo-parasitário, que impede a economia do país crescer sustentadamente, plantou raízes na segunda metade da década de 1980, logo após a redemocratização, e floresceu na década seguinte, quando o país viu a dívida pública explodir e as taxas de juros alcançaram patamares nos “cornos da lua”, ao longo da gestão Fernando Henrique Cardoso. 

No Banco Central brasileiro o entra e sai, com grande fluidez, de agentes do mercado financeiro para dirigir a instituição é frequente. Prepostos do mercado financeiro-bancário gerindo seus próprios interesses. As preocupações macroeconômicas, invariavelmente, tocam um samba de uma nota só. O controle dos níveis da inflação e a austeridade fiscal impedem a economia brasileira estacionar por mais de quatro décadas. Todavia, os fabulosos lucros dos bancos, ano a ano, crescem no contexto de uma economia combalida, atrasada tecnologicamente, em franca desindustrialização e sem competitividade internacional. Mesmo no período da administração política dos governos Lula-Dilma esses movimentos não foram revertidos.

Qualquer economista sério nesse país e preocupado com o desenvolvimento econômico, considera essas travas ao pais inaceitáveis.[8] No livro tem uma passagem em que Roberto Campos fala para Furtado que ele quase seria nomeado diretor-executivo da Superintendência de Moeda e Crédito, instituição que exercia o papel de Banco Central do Brasil antes de sua criação, em 1965: “V. quase foi nomeado, à revelia, corpore absente, diretor-executivo da Superintendência de Moeda e Crédito [...] trazendo para o posto um economista autêntico e interrompendo a tradição de banqueiros decrépitos”.[9] Essa passagem indica o desprezo com que um criador do BNDES tratava esses agentes econômicos, em momento do país que o papel do Estado era insubstituível na condução do desenvolvimento econômico. Infelizmente, em razão de compromissos acadêmicos e profissionais no King’s College, em Cambridge, não foi possível a Furtado aceitar o desafio.

Embora o livro apresente instigantes e ricos diálogos, a troca de correspondências que mais me chamou atenção foi entre Celso Furtado e o historiador mineiro Francisco Iglesias. Em apenas duas cartas de 1988, uma em agosto, de Iglesias para Furtado, e outra de novembro, no curso contrário, vemos dois grandes intelectuais, em tão pouco espaço, pensarem e projetar o país tão a frente. Os trechos abaixo revelam projeções nada animadoras e de uma atualidade ímpar. Iglesias desabafa:

“Uma vez, há alguns anos, falei com v. que o Brasil era inviável: v. contestou, dizendo que inviável era a Argentina ou o México (não estou certo). Pode ser que o país encontre ainda seu caminho, mas será no século XXI – afinal, o século tem cem anos. Lá para 2050, quem sabe? Quanto a nós, vamos morrer sob o clima da mediocridade, da mais apagada e vil tristeza, já cantada pelo poeta”. [10]

Após sua experiência como Ministro da Cultura no governo José Sarney, Celso Furtado responde a carta de Iglesias nos seguintes termos:

“A experiência do ministério, como você percebeu, foi interessante para mim [...] Como economista eu tinha deste país a visão de algo mais integrado, mais articulado, mais acabado. Somente agora percebo que o nosso é um país ainda na nebulosa, de perfil futuro difícil de captar. O que hoje me parece claro é que o ‘nosso’ Brasil, cujas raízes já estavam constituídas no século XVIII está soçobrando [...] Minha impressão é que o pais emergente tende a configurar-se como nova versão (piorada pelas taras do subdesenvolvimento) dos Estados Unidos, onde o cosmopolitismo convive com o tribalismo e a consciência de res publica quase não existe [...] Os interesses econômicos organizados (inclusive o crime organizado) vão pesar cada vez mais. Concordo com você que nossa geração nada deve esperar de bom, particularmente os sobreviventes do Brasil arcaico, como nós”.[11] (grifos nosso)

Francisco Iglesias faleceu em 1999, e Furtado em 2004. Este ainda testemunhou a chegada de um operário à presidência e Iglesias nem isso. As palavras e o sentimento dos dois infelizmente não perderam a atualidade. O que diriam se estivessem hoje vivos diante de um governo com traços fascistas, apoiado por extrativistas arcaicos, grupos paramilitares e militares, grupos do agronegócio e gestores públicos vendilhões encravados nos principais centros de decisão, que ascenderam ao poder depois de um golpe jurídico-midiático, em que o governo Michel Temer foi tão somente um período de transição para uma eleição manipulada?

O livro não poderia finalizar da maneira mais oportuna, com as correspondências trocadas entre Raúl Prebisch e Celso Furtado. Nelas, o leitor encontrará além de conteúdos técnicos, uma demonstração de carinho, afeto e reconhecimento por parte do grande economista argentino para com o brasileiro. Destaco um trecho de uma carta enviada por Prebisch, em 10 de outubro de 1962, que resume quem foi Celso Furtado ao longo das oito décadas de vida.

“[...] apesar de você reiteradamente ter manifestado seus desejos de dedicar-se à vida de estudo e exercer sua influência intelectual, os acontecimentos o obrigarão com frequência a mudar seus desígnios e a influir decididamente sobre os fatos e não só sobre a mente e o coração dos homens”.[12]

Celso Furtado foi isso mesmo que o economista argentino descreveu. Em síntese: um homem da teoria e da ação.

 

Obs: Esse texto foi elaborado para balizar minha participação no lançamento do livro, em 31.05.2021, promovido pelo Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.  


Notas: 

[1] LACERDA, Antônio Correa (Org.). Celso Furtado 100 anos: pensamento e Ação. São Paulo. Editora Contracorrente, 2020. SOUSA, Cidoval Morais de; THEIS, Ivo Marcos; BARBOSA, José Luciano Albino. (Orgs.). Celso Furtado, a esperança militante. 3 Volumes. Campina Grande: EDUEPB, 2020. LE COCQ, Nelson et. al. Celso Furtado: os combates de um economista. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/Expressão Popular, 2020.

[2] CENTRO INTERNACIONAL CELSO FURTADO. 100 anos de Celso Furtado. Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, vol. 15, n. 26, janeiro-junho de 2020.

[3] A primeira vez saiu pela editora Paz e Terra, em 1997, sob o título Obra Autobiográfica. Pela companhia das Letras, esse conjunto de livros ganhou uma nova roupagem e conservou o mesmo título. FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. Coordenação: Rosa Freire d'Aguiar. Ed. Definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 

[4] FURTADO, Celso. Diários Intermitentes, 1937-2002. Organização: Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Escrevi uma resenha sobre esse livro que foi publicada no dossiê 100 anos de Celso Furtado op. cit.

[5] FURTADO, Celso. Correspondência Intelectual, 1949-2004. Organização: Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 

[6] Idem, pg. 169.

[7] Idem, págs. 267 e 326.

[8] Ver, por exemplo, SANTOS, Reginaldo Souza; GOMES, Fábio Guedes. Outro modo de interpretar o Brasil: ensaios de administração política. São Paulo: HUCITEC/Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017.

[9] Idem, p. 180.

[10] Idem, pg. 136.

[11] Idem, págs. 137-138.

[12] Idem, pg. 400.