Inicialmente quero desculpar-me pela ausência aqui no blog, os últimos meses foram intensos, o tempo tem sido cada vez mais exíguo. No entanto, sempre estou lembrando dos leitores do Questões de Direito por Andréia Feitosa. Sem vocês nada disso seria possível, de fato vocês são o combustível necessário para que eu encontre tempo para escrever e manter o diálogo com todos. GRATIDÃO!
Feitas essas considerações iniciais, vamos ao que interessa, o tão falado Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, e a tsunami de alterações legais, procedimentais, governamentais, estratégicas, na busca da gestão inteligente, da transparência, da eficiência, da modicidade de tarifas, da cooperação, da busca por investimentos para o setor, da segurança jurídica. Enfim, trata-se de uma lei ousada e que tem como um das suas principais metas universalizar o acesso à água potável para 99% da população, e proporcionar tratamento e esgotamento sanitário para 95% das pessoas até o ano de 2033.
Há muito tempo discutia-se a respeito das diversas dificuldades enfrentadas pelo saneamento básico no Brasil, alguns setores afirmavam que a Lei n.º 11.445/2007, legislação que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, e cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico não tinha surtido os efeitos necessários, e após 13 anos da sua sanção, e diversas tentativas e busca de novas soluções para melhora no setor, seja por meio de parcerias público privadas, capitalização estratégica, locação de ativos, subconcessões, subdelegações, concessões patrocinadas, dentre outras modalidades de concessões administrativas, que possibilitam investimentos do capital privado para o setor, mesmo assim o saneamento é considerado bastante deficitário, comparando-se a outros setores da infraestrutura no Brasil.
As dificuldades enfrentadas pelas companhias estatais de saneamento, o déficit financeiro, a falta de estrutura, de acesso à água tratada, tratamento e esgotamento sanitário por milhões de brasileiros, a governança inteligente e estratégica foram argumentos fortes que fomentaram os debates para a criação e sanção do novo marco regulatório do saneamento básico.
A Lei surgiu por meio do PL n.º 4.162/2019, que adveio da MP n. 868/18, que no final acabou perdendo sua validade, pois o Congresso Nacional não apreciou a mesma no ano de 2019. Dessa forma, foi apresentado novo PL (4.162/2019), sendo o Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), o Relator, o PL recebeu 86 emendas no total. Contudo, o mesmo acatou apenas uma, que tornou mais precisa a referência legal, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG)[1].
O relatório e voto do Senador e Relator Tasso Jereissati, quando se referiu a atual situação do país ao abordar o acesso ao saneamento básico merece destaque[2], vou deixar um pequeno trecho aqui para aqueles que não puderem ler a íntegra:
“A atual crise sanitária causada pela pandemia da COVID-19 torna ainda mais urgentes as mudanças propostas, na medida em que evidenciou a vulnerabilidade das pessoas que não dispõem de acesso a água potável, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos. Enquanto órgãos de saúde pública de referência no plano internacional e no Brasil recomendam que se lavem as mãos com frequência para evitar a contaminação com o coronavírus, temos 35 milhões de brasileiros sem acesso à água tratada. Um grande e potencialmente letal paradoxo. O Brasil, em pleno século XXI, não pode aceitar ter condições de saneamento equivalentes àquelas que alguns países europeus já tinham no início do século XX. Como o marco legal, o País terá condições de em período relativamente curto, saldar essa aviltante dívida que é fundamentalmente social, dada a multidimensionalidade de seus impactos. Aprovando neste momento o PL n.º 4.162, de 2019, o Senado Federal estará não somente evitando, nos próximos anos, a morte de milhares de brasileiros, muitas deles ainda crianças, mas também reduzindo a pressão sobre o Sistema Único de Saúde, ao diminuir o número de internações provocadas pelo simples fato de que quase metade da população desse País, ainda que tenha acesso a cobertura de rede de telefonia celular, tem permanecido com os pés no esgoto. Esse momento é histórico. Os invisíveis, que não têm como manter estruturas de apoio para atuarem no processo de formação de políticas públicas, como é o caso de associações corporativistas, confiam, tão somente, nos seus 81 representantes nesta Casa para lhes garantir condições de saneamento compatíveis com padrões de vida do século XXI.
O inteiro teor do parecer e voto do Senador e Relator Tasso Jereissati pode ser encontrado através do link: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8122700&ts=1616445852443&disposition=inline, para os profissionais que atuam no setor recomendo a leitura[3].
A necessidade de investimento no saneamento, e a situação em que o Brasil se encontra quando a pauta é saneamento básico chama a atenção negativamente, inclusive, internacionalmente, trata-se de uma verdadeira dívida social que o país precisa saldar, especialmente com as populações mais carentes.
A Lei n.º 14.026/2020, atualiza 07 (sete) leis, quais sejam: Lei n. 9.984/2000, chamada de lei da ANA, que atribui a autarquia especial a responsabilidade e atribuições de políticas nacionais para o saneamento, além de ter o dever de editar normas de referência para o saneamento básico. A agência passa a ter a obrigação de regular o setor; altera à Lei n.º 10.768/2003, que dispõe sobre o quadro de servidores da agência, alterando também o nome da agência, e traz novas atribuições para a autarquia, que passa a ser especialista em recursos hídricos de saneamento básico. As atribuições conferidas a ANA foi objeto de um outro artigo de minha autoria, intitulado de: Os “super poderes” conferidos a ANA e os desafios da agência, após a sanção do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei n.º 14.026/2020).
Alterou a Lei n.º 11.107/2005, lei dos consórcios públicos, a nova redação possibilita a extensão das normas previstas na aludida lei federal para aplicação em convênios de cooperação (DEC n.º 10.588/2020), nos casos em que estes forem firmados por blocos de municípios para contratação para prestação dos serviços públicos de saneamento, e de forma coletiva, sendo obrigatória a contratação por meio de licitação, onde poderão concorrer setores público e privado.
Grandes alterações foram realizadas na Lei n.º 11.445/2007, a partir da sanção do novo marco regulatório do saneamento básico, a lei passa a tratar de forma direta e até congente sobre a universalização, a prestação dos serviços de abastecimento de água, tratamento e esgotamento sanitário, manejo dos resíduos sólidos, limpeza urbana, além de abordar as condições estruturais do saneamento básico. As mudanças possibilitam ainda, a articulação com as políticas públicas, o estímulo à pesquisa, a proteção ambiental, o combate à pobreza, o desenvolvimento e à utilização de tecnologias adequadas, bem como a seleção competitiva de prestadores dos serviços de saneamento.
As mudanças na legislação não param por aí, pois mais 03 (três) leis foram alteradas, são elas: Lei n.º 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, a alteração aduz que o Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos deverá ser revisado a cada 10 anos, no máximo. Também estabelece um prazo máximo para a extinção dos lixões, respeitadas as especificidades relacionadas ao tamanho dos municípios, as municipalidades que não possuem planos de resíduos sólidos, e nos casos em que os aterros sanitários forem economicamente inviáveis, nestes casos deverão ser adotadas outras soluções, devendo ser observadas as normas técnicas e operacionais, no sentido de evitar danos ou riscos à saúde pública e à segurança, bem como os impactos ambientais.
Foi alterada a Lei n.º 13.529/2017, legislação que trata da participação da União em fundos de projetos de concessões e parcerias público privadas, com o advento da nova lei, a União por meio do Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), participará e destinará recursos para o fundo com a finalidade exclusiva para financiar serviços técnicos especializados, como saneamento básico.
E, por último, mas não menos importante, foi alterada o Estatuto da Metrópole, Lei n.º 13.089/2015, modificação específica para estender as regras para as unidades regionais de saneamento. Não custa lembrar que, atualmente 35 milhões de brasileiros não possuem acesso à água tratada, e mais da metade da população não têm acesso ao tratamento e esgotamento sanitário, os números são assustadores, especialmente, quando se tratam de mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade “os invisíveis”.
O Brasil encontra-se com um atraso gigante face ao cenário internacional, instituições como Organizações das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial da Saúde (OMS)[4], e UNICEF têm chamado a atenção para esses dados alarmantes, não pode-se esquecer jamais que saneamento básico está diretamente ligado a saúde, uma vez que, para cada R$ 1(um real) investido, economiza-se aproximadamente R$ 4,00 (quatro reais) em saúde pública[5].
De fato trata-se de uma lei vanguardista, mas extremamente necessária, pois não é admissível que no Brasil, e em pleno século XXI, algumas regiões ainda estejam vivendo como na era medieval. Sem acesso à água tratada, a coleta e tratamento de esgotamento sanitário.
No relatório da Unicef, Strategy for Water, Sanitation and Hygiene 2016-20304, traz que a Agenda 2030 da ONU (ODS n. 6), proporciona uma oportunidade histórica para definir um novo rumo para a próxima era do desenvolvimento humano global, e promete mudanças transformacionais para crianças, assim como, para suas famílias.
Enfim, muitas foram as mudanças trazidas pela Lei n.º 14.026/2020, trata-se de uma lei vanguardista, o saneamento básico que sempre foi chamado de “o patinho feio da infraestrutura” merece toda atenção dos governos, instituições, órgãos de controle público, Ministério Público, Tribunal de Contas da União e Estaduais, e, especialmente da população. Somos os grandes fiscais da prestação dos serviços, se cada um de nós fizermos um pouquinho, com toda certeza as próximas gerações serão imensamente beneficiadas e gratas. Espero que tenham gostado do artigo, vejo vocês em breve!
Por Andréia Feitosa
Advogada e Consultora, mestranda em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito – IDP, pós-graduada em Direito Eleitoral pela Fundacem/Salvador, fundadora e diretora do Escritório Andréia Feitosa Advocacia & Consultoria, localizado na cidade de Maceió/AL. Possui vasta atuação na esfera cível e trabalhista, e nos últimos anos tem se dedicado ao Direito Público. Atualmente preside a Comissão de Universalização do Acesso à Água e Saneamento Básico da OAB/AL, e é Secretaria Geral da Comissão Nacional dos Juizados Especiais da OAB Nacional, membro da INFRA Women Brazil, diretora do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Miguel.
Contatos
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[1] SENADO NOTÍCIAS. Senado aprova novo marco legal do saneamento básico. 2020. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/06/24/senado-aprova-novo-marco-legal-do-saneamento-basico>. Acesso em 09 jul. 2020.
[2] SENADO NOTÍCIAS. Marco Legal do Saneamento Básico deve ser votado na próxima semana. 2020. Relatório e voto no Projeto de Lei n. 4.162/2019. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/06/18/marco-legal-do-saneamento-deve-ser-votado-na-proxima-semana>. Acesso em 09 jul. 2020.
[3] SENADO FEDERAL, Relatório e voto do Senador Tasso Jereissati, Marco Legal do Saneamento Básico, Lei n. 14.026/2020. Disponível em <https:// https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8122700&ts=1616445852443&disposition=inline>. Acesso em 30 jul. 2020.
[4] OPAS BRASIL.OMS atualiza dados sobre saneamento e água potável. 2013. Disponível em <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=3221:oms-atualiza-dados-sobre-saneamento-e-agua-potavel&Itemid=839>. Acesso em 14 abr. 2021.
[5] UNICEF, Strategy for water, Sanitation and hygiene 2016-2030. 2016. Disponível no Programme Division Unicef, New York, August. 2016. Acesso em 05 de jul 2020.