Em 1905 o governo de Alagoas foi autorizado a contrair um empréstimo internacional no valor de 500 mil libras dando em garantia açúcar e parte da arrecadação de imposto de exportação. Em valores de hoje, essa operação seria em torno de R$ 180 milhões. Na verdade, foram duas emissões de títulos: uma, na Inglaterra, no valor de 300 mil libras, e a outra, na França, de cerca de 15 milhões de francos franceses. Os títulos tinham taxas de retorno de 7%, uma das mais altas entre as operações dos Estados à época, só sendo superada pela taxa do Espírito Santo.
Essas operações, na maioria das vezes, eram envoltas em polêmicas. Como relatada, no caso alagoano, pelo grande escritor Graciliano Ramos, nas crônicas “Teatro I” e “ Teatro II”. Usando nomes fictícios e metáforas, Graciliano faz duras críticas à vantajosidade do suposto empréstimo e a quem era na realidade, no dizer do grande escritor, o verdadeiro beneficiário dos empréstimos:
(...)”Decidiu-se, portanto, para levantar o Teatro, arranjar na Europa um empréstimo, que no decorrer dos anos subiu extraordinariamente. O dinheiro obtido produziu vários benefícios, especialmente à personagem encarregada das negociações. Esse funcionário viajou bastante: percorreu alguns países, fixou-se na França, mudou-se para lugar mais seguro e aí findou os seus dias tranquilo, gordo, europeu, tão esquecido da língua materna que já nem compreendia a vasta correspondência que o chamava. Não houve meio para repatriá-lo, apresentá-lo aos correligionários saudosos.(...)”
É importante esclarecer que a legislação do Brasil naquele período não impedia que os entes subnacionais acessassem livremente os mercados internacionais e não estabelecia nenhum tipo de limite, o que fez com que no período de 1889/1943 os Estados representassem cerca de 25% do total da dívida externa do país. Boa parte dos entes acabaram por apresentar inadimplência. Assim, para melhorar a percepção de crédito do Brasil no mercado, foi necessário um grande processo de estruturação deste endividamento subnacional externo e interno feito pelo governo federal.
Atualmente, este tipo de operação (emissão de títulos) para entes subnacionais é proibida. Além disso, estabeleceram-se regras rígidas de controle e fiscalização pela Secretaria do Tesouro Nacional e observância de limites fixados por Resoluções do Senado Federal e Conselho Monetário Nacional.
Neste processo contínuo de melhoria de regras fiscais, o Brasil ainda irá passar por um novo processo de reformas estruturais. A pandemia deixará marcas profundas no endividamento público. Dessa forma, para desenvolvermos uma trajetória fiscal sustentável, o país deverá melhorar a eficiência do sistema tributário, da gestão administrativa e diminuir o grau de vinculação de seus orçamentos dos entes subnacionais. Também é preciso desenvolver regras para insolvência de Estados e Municípios, bem como para a reestruturação de suas dívidas através da reformulação do Regime de Recuperação Fiscal. Ter um sistema de insolvência sólido reduz risco moral de se usar inadequadamente recursos escassos e a tradição brasileira de financiar por toda a sociedade os equívocos de gestão de muitos entes. Não há dúvida que será um difícil e penoso processo de o desenvolvimento de regras, de aperfeiçoamento das instituições e do mercado.
A crise econômica global provocou uma baixa nos juros, inclusive no país. Isso traz à tona a importância do desenvolvimento de mercados financeiros domésticos incluindo mercados de crédito subnacionais. Criar um ambiente competitivo e diversificado de mercado de crédito subnacional pode ajudar a garantir o menor custo e disponibilidade sustentável de crédito. Isso significa abrir acesso em igualdade de condições entre empréstimos bancários e a emissão de títulos subnacionais, da mesma forma que o país conseguiu desenvolver um mercado robusto para colocar seus títulos – cerca de 4 milhões de investidores já aplicaram diretamente em títulos federais.
Diversos países já passaram por esse processo de amadurecimento. Nos Estados Unidos - EUA a EMMA – Electronic Municipal Market Access - congrega cerca de 44 mil entidades subnacionais, incluindo estados e municípios, que participam de um mercado de US $ 350 bilhões em títulos públicos. Apenas 71 emissores foram inadimplentes entre 1970 e 2011. De fato, logo após a crise financeira, entre 2010 e 2013, a taxa de inadimplência municipal foi de apenas 0,4%. México, Índia, Indonésia, países europeus e da América Latina já possuem mercados ativos em diferentes níveis de maturidade.
Diferentemente dos municípios dos EUA, verifica-se que os governos locais da América Latina geralmente têm muita dificuldade de acessar crédito: os entes subnacionais não atendem aos padrões de risco do mercado de capitais. Foram poucas emissões na região e, em sua maioria, com financiamento de curto prazo. Ainda não há um mercado desenvolvido e regular na América Latina. O acesso aos mercados financeiros pode ser um desafio para entes subnacionais ainda mais em regiões em desenvolvimento. No Brasil apenas 8 estados e 14 capitais, em 2020, podem contratar operações de crédito com garantia da União e, mesmo assim, após um grande périplo burocrático.
O Brasil tem um longo caminho a percorrer, mas o desenvolvimento do mercado de títulos públicos subnacionais será muito salutar como indutor da melhoria da gestão fiscal e financeira de Estados e Municípios. A cultura da responsabilidade fiscal e transparência das contas públicas será favorecida na medida em que os entes perdulários não sejam mais beneficiários de ajuda federal sem contrapartida de medidas duras, enquanto os entes bem avaliados pelo mercado terão seus investimentos financiados em ótimas condições, melhorando a qualidade de vida da população. Isso acaba com a cultura de passar a mão na cabeça e de mimar estados e municípios tratando-os como absolutamente incapazes. Precisamos desenvolver nossa federação com base no accountability, na responsabilização e na meritocracia.
George Santoro