O Brasil continua em plena ascendência no número de casos e óbitos por covid-19. No entanto, muitas lideranças políticas defendem a reabertura e gestores públicos tratam da retomada das atividades econômicas, flexibilizando as medidas de distanciamento social [1].
Nestas iniciativas faltam diretrizes claras, objetivas e bem embasadas de como isso poderia ser planejado com segurança. Quase sempre são propostas apresentadas por entidades e representações do mundo corporativo. Para entender como um bom planejamento pode ser feito, precisamos prestar atenção e estudar as experiências de outras regiões no mundo que passaram por uma boa parte da primeira onda da epidemia e estão tomando medidas eficientes e, até o momento, suficientes para executar uma reabertura.
Para o caso brasileiro, especialmente da região Nordeste, vale aquele ditado popular: cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. O segundo não tem efeito nenhum, mas o primeiro é muito necessário. Conforme relatório técnico produzido por um grupo de epidemiologistas da Universidade Federal de Pelotas, como parte de uma pesquisa maior encomendada pelo Ministério da Saúde, temos várias epidemias no país e essa característica é muito acentuada no Nordeste, pois a dinâmica da expansão do novo coronavírus assume formas diferenciadas nos distintos territórios [2].
Um exemplo de como a retomada das atividades econômicas tem sido realizada é no estado de Nova York (NY). Após ser fortemente atingido pela pandemia e alcançado um grande número de mortos, começa-se a execução de um planejamento de reabertura gradual. Depois de um período de fechamento de serviços não-essenciais para controle da epidemia, o chamado lockdown, o governo de NY adotou 7 critérios objetivos para os distritos que planejam reabrir com segurança agrupados em três categorias[3]:
Hospitalização e taxa de mortes
- Um declínio por 14 dias consecutivos no número de hospitalizações e mortes por Covid-19, sendo feita uma média em torno de três dias (rolling average);
- 15 ou menos casos novos confirmados de Covid-19, ou menos de 5 novas mortes pelo novo coronavírus, numa média em torno de 3 dias (rolling average);
- Menos de dois novos pacientes contaminados dando entrada em hospitais por 100 mil residentes;
Capacidade de atendimento de saúde, após retomada de cirurgias eletivas
- 30% de ambos os totais de leitos clínicos e leitos de UTI precisam estar disponíveis;
- Hospitais precisam ter um estoque de 90 dias de EPIs.
Testagem e rastreamento de contágios
Para reabrir, as regiões precisam ter:
- Capacidade para conduzir 30 testes diagnósticos para cada mil residentes, através de um número de locais de testagem devidamente divulgados, dependendo da população da região; a testagem deve ser priorizada em pessoas que possuem sintomas ou que estiveram em contato com casos confirmados de Covid-19.
- Pelo menos 30 rastreadores de contato para cada 100 mil residentes, ou mais se as projeções justificarem.
De acordo com estes critérios e os dados do dia 25 de maio, 8 das 10 regiões do estado de Nova York já poderiam reabrir, pois estavam aptas por todos os critérios definidos. No entanto, duas regiões atenderam apenas a 5/7 dos critérios e ainda não estão em condições para a retomada das atividades econômicas. A imagem abaixo demonstra esses resultados [4].
Figura 1: Dados das regiões de NY que atingiram os critérios de reabertura em 25 de maio
Uma pergunta muito útil deve ser feita nesse momento: caso o Brasil aplicasse os mesmos parâmetros tomados pelo estado de Nova York, o que poderia acontecer?
Em última live (01/06/20), o biólogo e divulgador científico, Átila Iamarino, em parceria com outros, realizou algumas simulações aplicando estes critérios ao estado de São Paulo[5]. O resultado não é nada animador. São Paulo atinge apenas 1 critério dos 7 apontados, aquele que exige mais de 14 dias de decréscimo no número de hospitalizações por Covid-19. Isso é uma demonstração inequívoca que embora haja disposição para planejar uma reabertura, São Paulo ainda não tem controle sobre a pandemia o suficiente para tanto, conforme a figura abaixo aponta
Figura 2: Diagrama que ilustra como São Paulo estaria reprovado nos critérios de reabertura de NY, pois atende apenas 1 dos 7 critérios necessários.
Os dois exemplos mencionados são emblemáticos dos desafios e possíveis dificuldades que envolvem a discussão da retomada econômica em regiões muito afetadas pela expansão do novo coronavírus, com elevada perda de vidas. Qualquer planejamento nesse sentido deve ser discutido com um amplo leque de atores, principalmente autoridades sanitárias, médicas, membros da comunidade científica, representações de segmentos econômicos e autoridades governamentais (estadual e municipal).
Em seu 8º Boletim o Comitê Científico do Consórcio dos Governadores do Nordeste foi enfático: o relaxamento das medidas em 1º de junho poderá acarretar um aumento de 200 mil casos da doença e 7,5 mil óbitos adicionais no final do mês [6]. Essa hipótese tem elevado grau de probabilidade de comprovação em razão da observação da evolução da crise sanitária na região, calibrada pelos sofisticados modelos de matemática e estatística, abastecidos pelas informações de todas as secretarias de estado da saúde do Nordeste, mais Ministério da Saúde e Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Como afirmado no início, tomando por base o relatório técnico-científico da UFPEL, a pandemia assume comportamentos diferenciados. Por essa razão, e com o intuito de contribuir racionalmente com as discussões sobre as propostas de retomada econômica em curso na região, o Comitê Científico também elaborou uma abrangente matriz de risco, definindo parâmetros técnicos que devem balizar os programas de reabertura, além de definir as zonas de vulnerabilidade (figura 3).
Figura 3: Parâmetros quantitativos e matriz de riscos.
Com isso, a região Nordeste, seus gestores e sociedade organizada, conta no momento com um instrumento muito importante para subsidiar o planejamento e programas de retomada econômica. Nesse momento o que mais importa é a definição de parâmetros sólidos, que tragam segurança aos programas, definição espacial, observando as condições sanitárias de cada região, estado, cidades e locais, e a definição temporal, com um olhar atento a dinâmica das curvas epidemiológicas, grau de transmissibilidade da Covid-19 e a situação de oferta dos serviços de saúde destinada para o enfrentamento da pandemia.
02 de junho de 2020.
Fábio Guedes Gomes, professor de economia da Feac/Ufal, Diretor Presidente da Fapeal e Membro do Comitê Científico do Consórcio Nordeste
Sérgio Henrique Albuquerque Lira, professor e pesquisador do Instituto de Física da Ufal
Notas:
[1] Declaração da OMS que o Brasil ainda está longe do pico da epidemia: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/01/brasil-teve-um-dos-maiores-aumentos-em-numeros-de-casos-aponta-oms.ghtml
[2] O trabalho pode ser acessado no link http://epidemio-ufpel.org.br/uploads/downloads/276e0cffc2783c68f57b70920fd2acfb.pdf