A entrada em vigor da assim chamada Lei de abuso de autoridade parece provocar um terremoto nos meios políticos e jurídicos. Haverá uma guerra no STF. Mais uma vez, os juízes devem julgar ações que contestam a constitucionalidade de iniciativas do Legislativo ou do Executivo. Pelo texto aprovado, um rosário de eventuais falhas agora é crime e pode resultar em multa e prisão para o infrator. E os infratores em potencial estão – na forma da lei – nas polícias, no Ministério Público e no Judiciário.

Serão punidos, por exemplo, aberrações com a condução coercitiva, invasões sem mandado judicial, a pressão para o depoimento de quem já afirmou que ficará em silêncio etc. O juiz que negar habeas corpus, mesmo com motivo incontestável para fazê-lo, também está sujeito à cadeia. São dezenas de situações que por certo ocorrem sem que os pais do delito paguem por isso. É o que muda.

Ataca-se a nova lei porque haveria suposta “criminalização” de investigações e, sobretudo, do combate à corrupção. É o mesmo que se diz quando fanáticos da Lava Jato reagem a críticas aos crimes vistos na operação. Nem era necessário, mas o que se descobriu com as gravações reveladas pelo The Intercept é uma fraude moral e intelectual. Então que haja formas de barrar esses abusos.

O ato do promotor Adriano Jorge de Barros Lima é um caso à parte. Ao disparar oito vezes numa caixa de som, irritado com o barulho festivo na noite de 31 de dezembro, em Maceió, o doutor não estava a trabalho. Sua investida armada não tem a ver com nenhuma ação investigativa. Mas a presepada não deixa de caracterizar um típico exemplo de abusivo uso do cargo público. É algo recorrente no país.

Não está claro, até agora, se haverá consequências no âmbito policial para o promotor. A queixa foi registrada pelas vítimas do gesto tresloucado do valente representante da lei. O Ministério Público Estadual anunciou timidamente um procedimento interno para apurar a conduta de seu integrante.

Há um mal-estar entre os doutores de toga. Natural. Controle da atividade dos membros do MP não chega a ser realidade pra valer. O Conselho Nacional da categoria age mais como esfera de arrumação que costuma abafar as denúncias sobre desvios da turma. Punição, nunca!

É que um de nossos males é o tal corporativismo. Vale para todos os lados da vida brasileira, no Estado e nos negócios privados. Embora nos dois polos o delito seja igualmente grave, perversão mesmo é quando as traquinagens corroem, por exemplo, o processo legal. É o passo para o abismo.

Policiais, promotores e juízes com carta branca para tudo? Não dá. Isso jamais resultará em desfecho saudável de qualquer investigação. O que prevalece nessas situações, logo de saída, é a sabotagem das garantias individuais e do direito à defesa. Advogado vive de “showzinho”, diria Sergio Moro.

Quanto mais poder ao Estado, menos espaço para o exercício da liberdade do sujeito. E temos de ver uma manada de analfabetos políticos “cobrando” a aplicação da força bruta para a manutenção da ordem e na defesa de “valores da família”. Segundo o Datafolha, em 2019 caiu o apoio à democracia.

Faz todo o sentido. Bolsonaro e seus acólitos gastam o tempo com declarações de apoio a torturadores e a regimes de exceção. Passam a vida espalhando patifarias autoritárias em palavrório nas redes sociais. Num ambiente e num clima contaminados por tais “princípios”, a treva se impõe.

Como se vê, misturo aqui diferentes modos de abuso de autoridade. O que está na nova lei contempla, é claro, exclusivamente ações no exercício do trabalho do servidor público. Seja coronel, delegado da Polícia Federal, procurador ou desembargador, todos devem seguir regras.

Mas por que a barulhenta resistência dessas autoridades? Não gostam tanto de aplicar o rigor dos códigos contra Deus e o mundo? Como está naquela propaganda cinematográfica, a lei não vale para todos? É a velha história: contra os outros, a força da Justiça. Em casa, aí não, esqueça!

Se alguns doutores saem atirando a esmo sempre que estão irritados com o vizinho, devem ser punidos. Se um juiz se mete a forjar meios para perseguir o réu, também precisa ser barrado pela legislação. Não parece óbvio? Ou alguém aí defende que adotemos “bandido de estimação”?