Prefácio
Este é um livro de um combatente e de um intelectual ansioso por iluminar aspectos silentes do passado e do presente de Alagoas. A riqueza do livro ora em mãos tem diferentes fundamentos. Está nas reflexões e lembranças de quem viveu os acontecimentos abordados com os próprios olhos e esteve entrelaçado diretamente a alguns deles. Ademais, baseia-se também em fatos da memória transmitida por sua família, mesmo que o autor não o haja explicitado. Como obra de um combatente, é um livro que mostra e reforça seu engajamento com alguns lados, e nos oferece fatos pouco conhecidos, mas fundamentais, da história político-partidária e das políticas de segurança de Alagoas.
Com uma escrita ágil e direta, quase “jabs”, na linguagem do boxe, Majella faz algo que parece urgente ao conhecimento das novas gerações alagoanas e aos de “fora”, que, como eu, anseiam por entender melhor os rumos que têm tomado as sociedades alagoana e brasileira. Traz à superfície e relembra eventos que nos ajudam a iluminar tradições de conflitos mortais que ainda se reproduzem intensamente em Alagoas, mas têm sua gênese nos recônditos de um passado silenciado, ou nunca visitado. Faltam ainda mais reflexões histórico-sociais que permitam servir de referência ao debate público, às ações públicas, sejam elas de movimentos sociais ou políticas públicas, sobre os caminhos que nos levaram da violência engendrada no “mundo da cana”, nos sertões e nas matas àquelas das “periferias” alagoanas.
O desconhecimento do passado, parte dele recente, aliado ao conforto com a ideia de que o que importa é o que podemos fazer para mudar o futuro, acalentado por governantes e ativistas sociais, tem se mostrado uma força intensa de reprodução do passado sem que dele se tome consciência. Reproduções que se anunciam como combates a puras “novidades”, coisas novas para os combatentes novos, mas velharias ativas de perpetração do sofrimento, se olharmos com o auxílio dos mais velhos em combate.
Geraldo de Majella navega por diferentes dimensões e momentos da história de Alagoas. Busca pistas e levanta hipóteses sobre como chegamos até um presente, marcado pelos assassinatos que atingem os nossos jovens, negros, mestiços, aqueles que se consideram mais claros que outros, moradores das periferias urbanas, marcados por muitas diferenças entre si. Mas sugere que não é possível entender o código de conflitos entre ricos e pobres e entre os pobres entre si se não entendermos os desenvolvimentos das tradições de violência das próprias elites, remontando-as ao passado, ainda vivo.
O livro trata desde o desenvolvimento urbano e as lutas pelo poder administrativo e econômico no século XIX, até a ocupação recente de grotas e favelas de lona. Seu ponto alto, entretanto, parece estar na segunda parte, ao tratar do ciclo de surgimento e declínio do crime de mando, do sindicato do crime e da gangue fardada, e do quanto isso marcou o processo de redemocratização e as tentativas de reorganização política de sua geração. Mostrando um domínio ímpar de eventos dos quais participou como membro de governos e partidos, traz pensamentos e dados novos sobre as relações entre poderes militares, políticos, partidos e movimentos sociais. Ele acaba por propor novos ângulos sobre o desenvolvimento do período ditatorial e da “redemocratização” em Alagoas. Por ser muito sintético, entretanto, deixa portas abertas para novos e curiosos pesquisadores.
Entender tais eventos, discuti-los nos mundos públicos possíveis de Alagoas e do Brasil parece vital para compreendermos o presente. Tal debate tem sido interditado, não apenas pelos governantes, mas também pelos movimentos sociais, que mostram uma dificuldade enorme de olhar o passado de sua própria sociedade. A desobstrução dos canais de diálogo e debate seria um caminho possível de propor formas de mobilização e ação.
Entre as contribuições importantes do livro está a reflexão e memória sobre movimentos sociais que tiveram uma grande importância nas Alagoas dos anos 1990, cuja parcela dos participantes veio a integrar os governos Kátia Born e Ronaldo Lessa, respectivamente na prefeitura de Maceió e no governo de Alagoas.
Este é um livro de um combatente-intelectual que participou ativamente de governos e movimentos, ansioso por fornecer instrumentos, através de reflexões e dados, aos que desejam se juntar ao ofício, à tarefa e à missão da luta contra as desigualdades e as lógicas de sua reprodução. Mesmo que em passadas rápidas, deixando-nos o anseio por mais informações, o livro é um chamado a uma nova agenda de pesquisas e questões que ficaram silentes ao longo de 30 anos. Cemitérios clandestinos, que o próprio Majella denunciou junto a órgãos da ONU, também na forma de um livro[1], as alianças entre elites políticas e aquelas que compunham o denominado sindicato do crime, o assassinato de lideranças populares e de opositores aos governos, hoje esquecidas, mostra o quanto investir em um mergulho no passado de Alagoas trará novas questões e novos instrumentos de combate aos combatentes. Ele sugere a relação entre a história de crimes políticos, o desenvolvimento institucional do estado de Alagoas e o surgimento das novas periferias urbanas em Maceió.
Entretanto, esse é um terreno mais apontado que explorado, ainda que sem dúvida levante a poeira para a urgência da questão, alertando as novas gerações. Ele vai ao passado e destaca a importância da prisão e do assassinato como forma de combate político na Alagoas do Império e da República. No mesmo período, mostra como os rumos políticos e urbanísticos foram indissociáveis das lutas coloniais nos portos alagoanos, entre franceses e ingleses. Quase como crônicas-reflexões, sinalizando sínteses, Majella combina informações historiográficas de uma bibliografia “clássica” alagoana e sugestões sobre suas conexões com o presente, visando iluminar o passado de conflitos de interesses e expressões de violência contemporâneas.
Não bastasse a abrangência e importância das questões levantadas, há outro aspecto que torna a publicação deste livro de grande relevância. Trata-se da oportunidade de a geração de Majella, inclusive daqueles que hoje estão nas universidades estaduais, federais e privadas, participar de um diálogo intergeracional com os mais jovens e “os de fora de Alagoas”, que chegaram de maneira mais intensa nos últimos 15 anos. Este diálogo enfrenta barreiras, e as antipatias mútuas criadas ao longo desse tempo pressionam para a redução do espaço de criação de uma esfera pública de discussão sobre os dilemas da sociedade alagoana.
Intelectuais de publicação tardia, a geração de Majella tem muito a dizer, ainda que as publicações tenham aparecido com mais intensidade apenas nos últimos cinco anos. Alguns livros publicados nos anos 80 e 90 jamais foram reimpressos; outros, elaborados como teses em universidades estrangeiras, nunca foram traduzidos. Seus impactos, portanto, foram reduzidos.
Como o sistema universitário sofreu uma profunda alteração, ainda que não claramente perceptível, devido à entrada de jovens “estrangeiros a Alagoas”, há um grau intenso de vazio na maneira de discutir as questões e no compartilhamento de memórias dos mais velhos e dos mais novos sobre Alagoas. Tal vazio pode ser reduzido em espaços que assegurem a possibilidade de franqueza e divergência intelectual, fonte nutridora da reflexão e crítica, sem os quais os círculos que falam para si mesmos, “ilhas”, diria Rachel Rocha, autocomplacentes, completaria, continuarão a se reproduzir de maneira fragmentada, tendo poucas consequências em termos de mobilização e transformação.
A riqueza de sugestões e análises trazidas pelo livro não poderia ser reduzida em um pobre prefácio. Por isso, siga em frente e veja você mesmo o esforço de síntese do autor. Com uma dose de disposição crítica, merece espaços de divulgação e debate, lançando-se em espaços nos quais possam emergir novas reflexões. Ele traz pontos incômodos, cuja lembrança criadora propiciada por um livro, se feita justiça à novidade de seu aparecimento, fará vicejar debates e divergências, algumas delas contundentes.
Se lutamos pela democracia e pela difusão do senso de reponsabilidade de uns com os outros, compartilhando as gratificações e as frustrações de termos um destino comum como cidade, como cidadãos, como gente e povo, uma parte do combate é a exposição ao diálogo e ao debate. Este livro é um convite generoso à luta e à interlocução. Boa leitura!
Fernando de Jesus Rodrigues
Professor do Instituto de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFAL.
[1] MAJELLA, Geraldo de. Execuções sumárias e grupos de extermínios em Alagoas (1975-1998). Maceió, Edufal, 2006.